ANAMORFOSES DE SALVADOR DALI
CLAUDETE RIBEIRO
Compreender a obra de Salvador Dali é sempre um grande desafio. Apesar de o artista ter produzido obras de rara beleza, as temáticas apresentadas são muito complexas para serem decifradas. No intuito de tornar esta compreensão um pouco mais efetiva, pretendo refletir, neste texto, parte da produção pictórica de Dali, que considero contaminada pelas suas marcas existenciais e submetida ao procedimento surrealista e ao método paranóico crítico.
As telas de Dali são carregadas de muitos símbolos nem sempre identificáveis. Esta simbologia é decorrente do método paranóico crítico e das expressões surrealistas, emergindo do trabalho do artista quase sempre sobreposta a um fundo bem identificável, já que percebemos cidades, praias, e um colorido próximo do azul do céu ou do mar. É marcante na obra de Dali o procedimento gestáltico para apresentar seus conteúdos fantasmáticos, destacando-os como figura sobre um fundo sempre reconhecível e aproximado ao seu prazer vivido na infância nas praias de Cadaqués e Port Ligat.
O surrealismo foi por excelência uma corrente artística moderna da representação do irracional, visando à renovação de todos os valores. Este movimento artístico que surgiu em 1924 proclamava que a imaginação se manifestasse livremente, sem o freio do espírito crítico. Os surrealistas deixavam o mundo real para penetrar no irreal, considerando a emoção mais profunda do ser em todas as possibilidades de expressão, com a aproximação do fantástico, quando a razão humana perde o seu controle.
Muito envolvido com o surrealismo, Salvador Dali desvelava pictoricamente os seus fantasmas inconscientes e produzia temas referentes aos seus sonhos, a partir do método paranóico crítico. Este método resumia uma atividade paranóica espontânea e irracional, baseado na associação interpretativa e crítica dos fenômenos delirantes.
A imagem inicialmente apresentada é o primeiro quadro de Dali, genuinamente surrealista. Anote-se que os seus elementos escatológicos incomodaram muito os próprios surrealistas.
imagem 2 - O jogo Lúgubre - 1929 – óleo e colagem sobre cartão, 44,4 x 30,3 cm – Paris - coleção particular –
O artista realizou a sua produção surrealista para evidenciar o desprezo pelas construções refletidas e seus encadeamentos lógicos. Defendia a ativação sistemática do inconsciente, do sonho, da fantasia e dos estados mórbidos, valendo-se freqüentemente da psicanálise.
As formulações psicanalíticas de Freud sobre o inconsciente favoreceram em Dali a estruturação do seu método, que transitava dentro do surrealismo, com as expressões pictóricas para os seus temas por anamorfoses.
Entende-se por anamorfose a deformação perceptiva de algo no sistema visual, que é tornada irreconhecível. A arte de representar pictoricamente essa imagem ou figura ocorre quando ela é observada frontalmente, parecendo distorcida ou mesmo irreconhecível, mas tornando-se legível quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, com o uso de lentes especiais ou por um dispositivo reconstituinte.
imagem 3 - Aparição de um rosto e uma fruteira numa praia – 1938 – óleo sobre tela – 114 x 143,8 cm – Hartford – coleção particular –
Observando esta tela "A aparição de um rosto e uma fruteira numa praia" por exemplo, verifico que nesta anamorfose há vários motivos que se combinam formando imagens duplas, o pé da fruteira é, ao mesmo tempo, as costas da mulher e, além disso, forma o seu rosto. A cabeça do cão é uma parte da praia e a parte central do animal é composta por frutos. Para Dali a idéia dominante é deixar surgirem várias imagens sucessivamente, até que se tenha um número de imagens na restrita capacidade paranóica da razão.
imagem 4 - A estação de trem de Perpinhan – 1965 – óleo sobre tela – 295 x 406 cm – Colônia – Museu Ludwig
Nesta pintura A estação de trem de Perpinhan o artista enfatiza o centro dela, no intuito de pintar uma tela em cujo espaço demonstrasse a verdadeira terceira dimensão. Neste trabalho, Gala olha Dali que a percebe como “Leda” a rainha de Esparta e mãe dos Dióscuros ou filhos de Zeus, Castor e Pólux. Gala se volta para o topo da cena como se estivesse num estado de anti-gravitação. Na obra estão também os dois personagens do Angelus de Millet em estado de hibernação, perante um céu que se transforma numa gigantesca cruz de Malta, no centro da estação de Perpinhan para o qual de acordo com o artista, converge todo o Universo.
Esta é uma produção da fase mística de Dali cujas temáticas não rompem com o método paranóico crítico, mas enfatizam a sua profunda intuição, realizada por uma comunicação imediata com o todo, numa visão absoluta da verdade e da graça divina. Representa o êxtase de Deus no homem e apresenta a noção simbólica de duplo por meio de Gala e Dali, Castor e Pólux, Dali e o irmão morto.
A fixação do artista em temas que o instigassem a refletir o simbólico e o mítico fantasmático era proveniente da sua própria história na relação com o irmão morto. Esta fixação o levara escrever em 1938, “O trágico Mito do Ângelus de Millet”. Foi a partir de um estudo científico sobre a tela de Millet, quando ela foi submetida ao exame de Raios-X, que se revelaram evidencias de um retoque na tela para esconder um filho morto do casal de camponeses debaixo da terra. Isto fez com que Dali percebesse esta cena forte como chocante, próxima daquilo que acontecera com ele quando os pais enterraram seu irmão, fixando-se neste tema pela aproximação com a sua existência.
imagem 5 - O Angelus - Jean François Millet – 1859 – óleo sobre tela – 55,5 x 66 cm – Paris – Museu do Louvre
A imagem do Ângelus de Jean François Millet inspirou Dali para uma série de releituras, pois este conteúdo presente nas suas alucinações fantásticas direcionava-lhe para este tema. Ele sempre acreditou que havia algo mais nesta tela, o elemento fantasmático da criança morta, motivo que o levou realizar uma série de trabalhos com as suas interpretações paranóicas críticas.
imagem 6 - Angelus Arquitetônico - 1933 – óleo sobre tela – 73 x 61 cm – Madrid – Museu Nacional da Rainha Sofia
O mito trágico do Angelus era uma imagem obsessiva e muito persistente nos trabalhos de Dali, considerada perturbadora, enigmática e rica de pensamentos inconscientes.
imagem 7 - Reminiscência Arqueológica de ‘Angelus de Millet’ – 1935 – óleo sobre madeira – 32 x 39 cm – S. Petersburg – Museu Salvador Dali
Esta tela do Ângelus foi explicada pelo artista como um fantasma ou delírio geológico, extraído de um passeio que fez ao Cabo de Creus, no nordeste da Catalunha, quando imaginou duas esculturas nas rochas. Tratava-se de dois personagens, um homem e uma mulher, cujos pormenores foram apagados pela erosão decorrente da sua origem muito recuada no tempo. A figura do homem é a mais deformada pela ação do tempo, pois se apresentava como um bloco vago informando tratar-se de uma silhueta masculina angustiada. Os dois corpos abertos na praia de Por Ligat indicam, que as duas esculturas têm entradas na base, podendo tratar-se de duas torres. Observando este cenário estão uma criança e seu pai, refletindo a imagem fantástica visualizada na infância do artista criança junto do seu pai.
imagem 8 - Burro apodrecido - 1928 – óleo, areia, partículas de vidro, sobre madeira – 61 x 50 cm – Paris – coleção particular -
Nesta obra "Burro apodrecido" Dali realiza uma pré-figuração para uma das seqüências do filme de Luis Buñuel, O Cão Andaluz, cuja imagem dupla torna difícil e incompreensível a sua interpretação imediata, porque apresenta dois movimentos sucessivos, a interpretação e o delírio.
As imagens duplas desta tela podem ser percebidas, se forem destacadas do fundo, tornando legível o contorno de uma mulher dormindo, se for vista de um determinado ângulo ao ser colocada numa rotação de 180º. Destacadas do fundo, também, podem ser identificadas as imagens do burro apodrecido e do leão invisível, todos no cenário de fundo de uma praia da Catalunha.
imagem 9 – Espanha - 1938 - óleo sobre tela - 91,8 x 60,2 cm – Roterdam – Museu Boyman- van – Beuningen -
A tela Espanha foi pintada como a premunição da guerra em Dali. Nela o artista representa personagens duplas, visíveis no primeiro plano. Trata-se de um enorme corpo humano feminino, parecendo um enorme formigueiro de braços e pernas esmagando-se mutuamente. Há um grupo de soldados lutando que se constituem no rosto da mulher, desvelando-se para o artista num manifesto por analogias.
Apesar de Dali se considerar apolítico, a guerra civil gravou no artista o horror violento desta revolução. Segundo ele, a imagem foi retratada por espasmos convulsivos para reencontrar elementos perdidos da tradição, na busca de uma fé. A Espanha martirizada nas alucinações de Dali era representada com o odor de carne esquartejada e queimada espiritualmente, misturando-se com o cheiro de suor e morte. O desastre da guerra que assolava a Espanha exacerbou em Dali a sua paixão estética, postura que para muitos foi vista como frivolidade.
Toureiro alucinógeno é a maior obra de Dali, ela foi construída por elementos variados a partir da dualidade da imagem.
imagem 10 - Toureiro alucinógeno – 1967-70 – óleo sobre tela – 398,8 x 2,99,7 cm – St. Petersburg – Museu Salvador Dali -
Nesta obra o artista provoca uma ilusão no espaço, produzindo nele os temas que remetem a outras obras já realizadas pelo artista, como a Vênus de Milo, Dali criança observando a cena, a abelha, o touro, Gala e outras. Esta tela é apresentada por várias metáforas que decorrem do procedimento paranóico crítico, desvelando um espaço com poder criador - destruidor. Ao produzir esta obra o artista registrou uma ilusão lúcida, justapondo imagens dissimuladamente, trazendo nos elementos centrais o rosto de Dali, ponto de partida e fio condutor para a sua leitura.
O tema da tauromaquia não é comum nos trabalhos do artista, mas aqui ele apresenta uma temática codificada, indicando que o toureiro está prestes a ser morto, pois apresenta uma aparência serena, própria de uma estátua funerária, provavelmente, para exorcizar nele o fantasma do medo da morte.
imagem 11 - Quadrante central do Toureiro alucinógeno
Se dividirmos a tela do Toureiro alucinógeno em doze quadrantes, pode-se observar que cada quadrante indica um novo quadro, ou então pinturas que já foram realizadas por Dali.
imagem 12 - Toureiro alucinógeno dividido em 12 quadrantes
No último quadrante inferior da direita está o Dali menino, cujo campo de visão abarca o conjunto da obra, parecendo extasiar esta criança. A Vênus gigante e as pequenas, as moscas reais, as rosas e o rosto de Gala. Este rosto no alto da tela se assemelha a um Cristo estabelecendo um olhar diagonal com a criança na base da tela e indica a sacralidade mítica do tema no olhar de Dali. A Vênus gigante é a presença da matrona na grandiosa arquitetura da arena, e este é um cenário da mitologia pessoal do artista, já visto em outro contexto por ele retratado.
Segundo Dali trata-se de uma fantasia inconsciente materializada, representada num mundo caótico proveniente do seu estado de alucinação que toma forma.
imagem 13 - último quadrante inferior direita do Toureiro alucinógeno
Apesar das temáticas do artista serem marcadas por fatos experienciados, como se pode observar, regularmente no último plano das imagens apresentadas neste artigo, quase sempre se vê uma praia, que pode ser Cadaqués, ou Port Ligat, ou ainda, o Cabo de Creus. Todos estes espaços fazem parte da história de Dali, localizados na Catalunha e que o artista preservou nas suas imagens mentais.
imagem 14 - Litoral da Catalunha – Cadaqués – Port Ligat
As temáticas anamorfoseadas desenvolvidas pelo artista, nas obras aqui apresentadas, evidenciam conteúdos que marcaram vários momentos vividos por ele, ocorrendo de forma alucinada e expressando seus sonhos ou fantasias inconscientes, mas sobrepondo-se a um fundo imagético, que traz recordações muito boas da vida do artista: as praias onde passou a sua infância nos momentos de lazer e prazer ou então a praia onde escolheu viver com Gala os seus melhores momentos, Port Ligat.
Nas obras aqui apresentadas, Dali explora a cor para dar vida às imagens, usando os azuis que indicam a sabedoria e equilíbrio, os amarelos apontando a energia vital, os terrosos associados à existência e vida, bem como os vermelhos eufóricos próprios da personalidade excêntrica do artista.
De acordo com o processo gestáltico da percepção é o mecanismo psicológico da simplificação que está presente na apreensão imediata do percebedor. Esta é uma regra geral para se identificar o que está no entorno dos seres humanos. Entretanto, na obra de Salvador Dali a ocorrência deste processo perceptual é muito difícil, porque a complexidade do trabalho paranóico crítico impede a percepção por simplicidade.
Como ele tinha o compromisso na sua produção com o Surrealismo e o realizava a partir do próprio inconsciente, esta produção artística exige do leitor uma viagem perceptiva que necessita exercitar o seu olhar fruidor.
Procurei demonstrar neste texto que para ler a obra de Dali é necessário um exercício perceptual bastante complexo. A riqueza da obra e a beleza das cores e dos temas são os elementos componentes, cujo conteúdo tem por desafio compreender o que o artista catalão quis expressar para o mundo, quando afirmava “O Surrealismo sou eu”.
Bibliografia utilizada:
DESCHARNES, Robert e NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904-1989 - A OBRA PINTADA 1904-1946 - Germany: Benedikt Taschen, 1997.
GIBSON, Ian – LA VIDA DESAFORADA DE SALVADOR DALI – Barcelona: Anagrama Editorial, 1998.
GIBSON, Ian - LORCA-DALI. EL AMOR QUE NO PUDO SER - Barcelona: Plaza & Janés Editores, 2000.
MADDOX, Conroy - SALVADOR DALI 1904-1989: O GÊNIO EXCÊNTRICO - Germany: Benedikt Taschen, 1993.
NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904 - 1989 - Germany: Benedikt Taschen, 1996.
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