DALI E A ESTÉTICA DA ORALIDADE
Salvador Dali realiza um trabalho pictórico instigante, principalmente quando este conteúdo ultrapassa a fronteira do real, penetrando no espaço surreal. Neste artigo me proponho a refletir a temática do canibalismo estético desenvolvido pelo método paranóico crítico, que considero associado com a oralidade do artista.
Como já foi dito em artigo anterior Dali nasceu após a morte de um irmão que teve o nome de Salvador, assim como do seu pai e avô paterno. Ele viveu como filho único durante quatro anos, quando nasceu a irmã Ana Maria. Durante este período ele teve toda a atenção materna, tendo como experiência um forte desejo de amor, que seria sublimado a partir do seu encontro com Gala.
imagem 1 – fotografia de Dali com 1 ano.
Quando estava com quase vinte anos, em 16 de fevereiro de 1921 Dali perdeu sua mãe Felipa vítima de câncer. O impacto desta perda foi devastador. Desesperado, Dali fez um juramento: ele arrebataria a mãe da morte com as espadas de luz que algum dia brilharia brutalmente em torno do seu glorioso nome. E foi assim que aconteceu, quando o artista começou a ter sucesso. A partir do seu encontro com Gala, ele usou um mecanismo de defesa do ego convertendo o afeto da mãe para Gala, que passou a exercer o papel substituto da sua figura materna.
imagem 2 – DALI - Retrato da mãe de Dali, Dona Felipa Domenech – óleo sobre tela, 40,1 x 27,2 cm, 1920, coleção particular.
Este foi o único retrato da mãe pintado por Dali durante a sua existência. Ele realizou outras obras homenageando-a, inclusive uma que lhe valeu grande rancor do pai por não concordar com o trabalho produzido pelo filho.
Imagem 3 – DALI – Enigma do desejo – Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe – óleo sobre tela, 110 x 150,7 cm, Munique, Staatsgalerie moderner Kunst, 1929.
Nesta obra O enigma do desejo Dali desvela a necessidade de reeditar a figura materna, aquela que o alimentara e protegera durante os seus primeiros dezenove anos. Neste enigma ele repete trinta e quatro vezes a expressão “minha mãe”, reveladora da necessidade desta reedição do amor e proteção materna.
imagem 4 – Recorte do Enigma do desejo, Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe.
Estudando mais atentamente a obra de Dali observa-se na sua expressão plástica algumas fixações da oralidade na sua existência, proveniente de uma estética canibalista retratada a partir do método paranóico crítico.
A postura do artista desvela esta oralidade impregnada no universo Daliniano, cuja origem do gênio criador sugere uma oralidade semelhantemente a um bebê não desmamado. Esta fixação no precoce desenvolvimento do artista aparece dissimulada pelos seus escritos em A vida secreta de Salvador Dali.
Neste trabalho ele evidencia um anseio frenético e constante da necessidade instintiva para “... comer tudo, comer o que for, sempre, em toda a parte e completamente”. Na mesma obra reitera ”... tudo que é comestível me excita ... eu morderia todas as coisas: beterrabas, pêssegos, cebolas”; e acrescenta “... aquela casa em Cadaqués onde morávamos, eu sonhei em construir suas paredes de pão. Eu gostaria que todas as cadeiras fossem de chocolate. Mesmo hoje ainda não desisti dessa idéia ...”.
imagem 5 – DALI – Cesto de Pão – antes da morte que a mácula – óleo, material e dimensões desconhecidos, coleção particular.
A oralidade paranóica do artista fica evidente, apesar do desejo de crescer, tornar-se violento e irreprimível. A própria comestibilidade deixará de lhe impor limites e obstáculos para a concretização desta oralidade devoradora, pois desejaria comer tudo. “... não há nada que não possa ser comido: ... esta já era a minha expressão favorita ... minhas obras comestíveis, intestinais e digestivas foram intensificadas ... eu queria comer tudo e planejava construir uma grande mesa de ovos duros que pudessem ser consumidos...”.
imagem 6 – DALI – Pão francês médio com dois ovos estrelados a cavalo, sem o prato, tentando sodomizar um bocado de pão português – óleo sobre tela, 16,8 x 32 cm, Roterdã, Museu Boymans-van Beuningen, 1932.
Comer tudo! Reside aí o mais precoce e essencial fantasma obsessivo da experiência Daliniana. Esta é a necessidade de internalizar tudo o que é comestível para suprir a sua carência, para alimentá-lo de afeto.
Dali construiu fora da sua casa de Port Lligat um espaço destinado e coroado com dois ovos enormes, e contendo dentro a ‘sala do ovo’.
imagem 7 – Imagem extraída do filme Salvador Dali dirigido por Adam Low.
Este cenário dedicado ao simbolismo dos gêmeos divinos, era um verdadeiro altar do templo ‘dioscúrico’, referente ao mito dos dióscoros. Um deles, Castor que é mortal e se aproxima do irmão morto de Dali ou de Gala, a substituta da mãe e Pólux que é imortal e vai além do espaço e do tempo, é o próprio Dali.
imagem 8 - Imagem extraída do filme Salvador Dali dirigido por Adam Low.
Em 1965 após, tomar conhecimento da tese realizada pelo seu psiquiatra Pierre Roumeguère que explorava o tema mitológico e arquetípico dioscúrico dos gêmeos Castor e Pólux, Dali comprovou a sua experiência dramática vivida com referência ao seu próprio mito trágico: “... senti uma emoção incomparável ao ouvir a verdade absoluta pela primeira vez: uma tese psicanalítica revelou para mim o drama que se encontra na base de minha estrutura trágica. Estava relacionado com a presença inevitável, nas profundezas de mim mesmo, de meu irmão morto, que meus pais adoravam tanto, que no meu nascimento, deram-me o mesmo primeiro nome, Salvador”.
imagem 9 – O irmão de Dali, Salvador Galo Anselmo que morreu com vinte e um meses em agosto de 1903.
Sempre que ele se deparava com a imagem do irmão morto sentia “... um choque foi muito violento ... os terrores de que eu era preso cada vez que penetrava no quarto de meus pais e quando olhava a fotografia de meu falecido irmão – uma criança muito bonita, toda ‘engalanada’, cujo rosto havia sido retocado, ... a noite inteira eu visualizava esse irmão ideal num estado de total putrefação. Eu só adormecia quando pensava na minha própria morte e ao aceitar a idéia de me encontrar no caixão, descansando finalmente ... A experiência era visceral e justificava a estrutura mental do meu ser ...”.
Esta fantasia revela a percepção pelo artista do irmão morto, considerando-se Pólux que atormentado pela perda do irmão, suplica ao seu pai, Júpiter, que lhe devolva o companheiro Castor. Comovido com tamanha fraternidade, o senhor dos Deuses propõe uma única solução para salvar o jovem: Pólux deveria dividir a sua imortalidade com o irmão, alternando com ele um dia de vida e outro de morte.
imagem 10 – DALI – Encontro da ilusão e do momento parado – dois ovos estrelados apresentados numa colher – óleo sobre tela, 23 x 15 cm, Nova Iorque, Coleção Particular, 1932.
Este caráter reversível e recíproco das suas fantasias sobre a vida e a morte revela uma relação projetada sobre os outros, estabelecendo o mecanismo do perseguido e perseguidor, próprio de uma paranóia psicótica, proposta pelo método de representação paranóico crítico.
“... dizer que eu penso incessantemente sobre a morte não é o bastante. Eu carrego em mim a sua presença fabulosa. Com mais força ainda no momento de comer. A realidade da morte aparece diante de mim a cada refeição e se impõe a si mesma ... assim que o odor das sardinhas fritas chega às minhas narinas, eu me volto para o cemitério, e a minha felicidade gastronômica é aumentada pela consciência da morte. Meu apetite põe as lápides abaixo. Ao degustar a carne mais limpa que vem do mar, eu digo a mim mesmo: ‘eu não estou morto, eu vivo, eu vivo’, e salivo duplamente, também saboreando esta evidência maravilhosa ... doravante passarei a degustar qualquer sardinha com especial apreciação se ao mesmo tempo estiver pensando em todos os meus amigos que estão mortos, de preferência a tiros ou martirizados ... por sua vez, se eu comer a sardinha com um bom apetite, é porque o faço em nome dos mortos. Em nome dos mortos, eu a como vorazmente ...”.
imagem 11 – DALI – Telefone num prato com três sardinhas assadas no fim de setembro – óleo sobre tela, 45,7 x 54,9 cm, Sampetersburg, The Salvador Dali Museum, 1939.
Se a relação oral de Dali é a base da sua relação com o mundo exterior, então as suas relações com os outros serão profundamente ‘canibais’. “... minha fixação no mundo foi conseqüentemente formada pelo caminho triunfal de minha boca ... o maior refinamento gastronômico é o de comer seres ‘cozidos e vivos’ ...”.
imagem 12 – DALI – Canibalismo de outono – óleo sobre tela, 65 x 65,2 cm, Londres, The Tate Gallery, 1936.
Referia-se a si mesmo como “... queijo Gruyère é a minha personalidade ...”. Sua identidade era associada ao alimento que poderia ser comido a qualquer momento na sua fantasia persecutória e paranóica.
“A sublime lei fundamental de nossa religião católica, apostólica, romana é engolir Deus vivo... um rei deveria ser como um bom queijo: bem maduro ...”. Estes são os aspectos reversíveis da relação cíclica de Dali com a vida surreal dos grandes mitos, o Deus e o Rei, ambos próprios para serem comidos ou internalizados, desvelando a sua oralidade devoradora;
COMER X SER COMIDO
Na sua conduta conjugal Dali sugere a extensão deste desejo para o arrebatamento do cosmos, que adquire o mesmo sabor que o do corpo glorioso e sublime do seu cônjuge gêmeo: Gala. Ele desenvolve um verdadeiro festival de canibalismo em seus escritos gastro-estéticos, estendendo ao pai via Gala o desejo de:
COMER X SER COMIDO
“... Sob a forma daquela pastilha sagrada ... a hóstia consagrada da comunhão paterna ... Gala tornou-se uma representação sublime e deliciosa do meu pai ... Gala assumiu um valor sagrado; ela vinculou através de Picasso, meu amor à paixão de meu pai e à paixão estética ... assim eu tive a oportunidade de degustar meu pai em Gala em pequenos bocados suculentos, enquanto ao mesmo tempo concordava em ser devorado por Gala ... e que nossas paixões sejam devoradoras, mas tenhamos um apetite ainda maior para viver a fim de devorá-las ...”
imagem 13 – DALI – Retrato de Gala com duas costeletas de cordeiro em equilíbrio sobre o ombro – óleo sobre madeira de oliveira, 6,80 x 8,80 m, 1933.
A gastro-estética Daliniana ligada à sua oralidade também devorante, está relacionada com o tema da morte do devorado. Esta fixação canibalesca que traz o fantasma do casamento místico desta oralidade com a morte compreende:
COMER X SER COMIDO
COMER X MORRER
O segredo de Dali, velado atrás da sua oralidade reside em estabelecer uma estética excêntrica, pois seus julgamentos críticos da arte procedem sempre da mesma oralidade delirante e obsessiva.
Cada um de seus escritos sobre o surrealismo provém da mesma visão estética ou da mesma alucinação oral, da sua fixação no peito materno, no qual ele encontra o que é comestível, o ser comido, pela mãe ou pelo irmão ou o aspecto glutão, voraz, canibal, o comer a mãe, seu irmão e Gala.
Seu método resume uma atividade paranóica espontânea e irracional, baseado na associação interpretativa do próprio desenvolvimento e dos fenômenos delirantes. Com este método Dali decifra suas fantasias catequizadas e os símbolos das próprias visões surreais e apavorantes, povoadas de imagens transcendentes, eróticas e místicas.
Bibliografia consultada:
DALI, Salvador - VIDA SECRETA DE SALVADOR DALÍ - Figueres, Gerona: Dasa Edicions, 1981.
DALI, Salvador - DIARIO DE UN GENIO - Barcelona: Tusquets Ediciones, 1984.
DALÍ, Salvador y PARINAUD, A - CONFESIONES INCONFESABLES - Barcelona: Editorial Bruguera, 1975.
DESCHARNES, Robert e NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904-1989 - A OBRA PINTADA 1904-1946 - Germany: Benedikt Taschen, 1997.
GIBSON, Ian – LA VIDA DESAFORADA DE SALVADOR DALI – Barcelona: Anagrama Editorial, 1998.
LOW, Adam – SALVADOR DALI – Filme: Visual na Arte, Madrid: Visual Ediciones, 1994.
MADDOX, Conroy - SALVADOR DALI 1904-1989: O GÊNIO EXCÊNTRICO - Germany: Benedikt Taschen, 1993.
NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904 - 1989 - Germany: Benedikt Taschen, 1996.
PAUWELS, Louis - LES PASSIONS SELON DALI - Paris: Denoël Ed., 1968.
Sites da Internet:
ROUMEGUÈRE, Pierre – O MITO DIOSCÚRICO E ESTÉTICO DE DALI – http:www.galeon.com/xcient/canibalismo.html ( consultado em 02-11-2006)
ROUMEGUÈRE, Pierre – CANIBALISMO Y ESTÉTICA: del canibalismo paranóico de la gastro-estética – http:www.galeon.com/scient/canibalismo.html
(consultado em 01-11-2006)
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