quarta-feira, 1 de julho de 2015

DALI: uma existência fantasmática e erótica

                                                                                                                           CLAUDETE RIBEIRO

      Falar de Salvador Dali exige um conhecimento da sua infância e adolescência. Estudando-se a vida do artista observa-se uma historia completa de fantasias. Com a existência de um irmão morto anterior ao seu nascimento, um pai exigente e complicado e algumas mulheres que substituíram a mãe durante sua fase infantil, podem-se visualizar as fantasias presentes em quase toda a sua obra.

      Ele sempre demonstrou ser um gênio acompanhado de um forte egocentrismo, cujas características percorrerão toda a sua vida. Com base nas suas vivências, pode-se observar uma evolução artística presente nas composições fantásticas e eróticas, desde o neo-cubismo ao pré-surrealismo e do seu método Paranóico-Crítico.

       Salvador Dali nasceu no dia 11 de maio de 1904, em Figueres, cidade localizada no nordeste da Espanha, situada na província da Cataluña, muito próxima da França, local que lhe permitiu muito contato com o resto da Europa.

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                         imagem 1- Região da Cataluña onde se encontram Cadaques e Figueres, as primeiras cidades de Dali.

         O artista é filho de uma família que desfrutava de certa importância local, pois seu pai exercia a função de notário (dono do cartório local).

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                imagem 2 - Pai do artista em Llané – óleo sobre tela, dimensão desconhecida - 1920.

        Ele teve um irmão dez anos mais velho, que morrera de meningite, três anos antes do seu nascimento. Este irmão chamava-se Salvador, como o nome do artista.

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                         imagem 3 – Retrato do meu irmão morto – óleo sobre tela, 175 x 175 cm – 1963.

        Do nascimento de Dali em maio de 1904 até janeiro de 1908 quando nasceu a sua irmã, Ana Maria.

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imagem 4 - A jovem Ana Maria de costas – óleo sobre tela, 103 x 79,5 cm – 1924 e Personagem à janela - óleo sobre tela, 103 x 65 cm - 1925.

        Dali foi mimado como o filho único tão esperado, vindo para suprir a ausência do primogênito, de quem herdou o primeiro nome. Neste período seus pais concretizavam todos os desejos de Dali.

        A morte do irmão havia trazido para os pais um profundo sofrimento. Eles o perderam com sete anos de idade e compensaram a sua falta com o nascimento de Dali.

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                                imagem 5 – Foto de Salvador Dali aos 5 anos – 1908-1909.

        Os pais sempre comentavam com Dali que o irmão e ele eram muito parecidos, apesar de ambos pensarem de modo muito diferente. O artista se imaginava como um segundo ovo que surgiu na barriga da mãe.

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                    imagem 6 - Ovo estrelado sem o prato - óleo sobre tela, 53 x 46 cm – 1932.

        Esta semelhança provocava em Dali as imagens mentais de que se assemelhavam a dois ovos iguais dentro da mãe antes do nascimento, ele e o irmão.

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                       imagem 7 - Arquitetura Surrealista - óleo sobre madeira, 14 x 18 cm – 1932.

       Como Dali, o irmão também possuía a morfologia fisiológica de um gênio. Ambos apresentavam sintomas de precocidade, comparação realizada pelos pais. Entretanto, Dali considerava que o irmão tinha um olhar velado pela melancolia, que poderia ser uma característica intransponível pela sua inteligência. Mas apesar de considerar-se menos inteligente do que o irmão morto, afirmava que se diferenciava dele, porque era mais reflexivo.

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     imagem 8 – Criança geopolítica observa o nascimento do homem novo - óleo sobre tela, 45,7 x 52 cm – 1943.

        Dali persistia na idéia de ter lembranças comparativas com o irmão, assim como, gostava de imaginar-se do próprio período pré-natal, quando estava dentro da barriga da mãe. Ele identificava este espaço como um “paraíso”, cuja cor assemelhava-se ao "macio, quente e imóvel como o inferno".

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                           Imagem 9 - Meditação sobre a harpa - óleo sobre tela, 67 x 43 cm – 1932.

        Freqüentemente tinha visões sobre o período anterior ao próprio nascimento: era a imagem de dois ovos borbulhando numa frigideira, ele e o irmão dentro do ventre antes da concepção. Esta fantasia exercia nele uma forte atração, era como se tivesse uma alucinação fundamental sobre a sua origem.

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               Imagem 10 - Ovo estrelado no prato, sem prato - óleo sobre tela, 60,4 x 42 cm – 1932.

        Simbolicamente, imaginava a sua existência junto com o irmão dentro da mãe, referindo-se ao espaço que os abrigava, sendo comparado a uma frigideira. Acima deles estava a Ana Maria que depois de algum tempo iria nascer.

       Sua educação teve início na escola primária local, onde permaneceu até ser transferido para a Congregação dos Maristas, na condição de internato.

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                           imagem 11 – Eu próprio aos 10 anos, quando era a criança-gafanhoto – complexo de castidade – óleo sobre madeira, 22 x 16 cm – 1922.

        Nessa época ele era considerado um rebelde, realizando sempre o contrário do que lhe era proposto. Comportava-se como um garoto anti-social, procedimento realizado para impressionar e chamar a atenção dos outros para si.

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                                         Imagem 12 – Auto-retrato - óleo sobre tela, 52 x 45 cm – 1921.

         Dali relatou uma passagem da sua infância quando realizava um passeio escolar junto com os colegas de classe escolar. Ele empurrou um companheiro num penhasco com cinco metros de altura, provocando-lhe várias fraturas!

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Imagem 13 – Burocrata médio atmosferocéfalo a ordenhar uma harpa craniana – óleo sobre tela, 22 x 16,5 cm - 1933.

         Apesar de presenciar a necessidade de socorro e cuidados ao menino, durante toda esta confusão, ele pouco se incomodou com o fato, deixando todos e indo comer algumas uvas, revelando uma de suas características: o sadismo.

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                        Imagem 14 – Canibalismo de outono – óleo sobre tela, cu x 65,2 cm – 1936.

        Durante a fase infantil Dali gostava de submeter os bichos domésticos à flagelação, ele costumava torturar estes animais quando estavam machucados, colocando seus ferimentos em formigueiros, pois desfrutava de imenso prazer ao ver o sofrimento destes, quando suas feridas ficavam repletas de formigas.

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                     Imagem 15 – Aranha da noite ... esperança – óleo sobre tela, 40,5 x 50,8 cm - 1940.

         Para atrair a atenção dos adultos Dali empregava ações masoquistas, jogando-se de vários degraus das escadas, ou derramando sobre o próprio peito o café quente pela manhã, pouco se importando com os ferimentos ou a dor.

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                              Imagem 16 – imagem de Dali apresentada por Fábio Betti - 26 Abril 2011.

         Antes dos seis anos Dali já revelava considerável talento artístico pintando os seus primeiros quadros. Suas primeiras produções foram em tampas de papelão retiradas de caixas de chapéu da chapelaria da tia.

         A solidão tornara-se para Dali uma obsessão. Ele costumava recolher-se no sótão da casa e permanecia lá por muito tempo, provavelmente, alimentando as suas fantasias para alcançar a genialidade. Ficava muito tempo subjugado por delirantes vôos da sua imaginação, favorecidos pelo próprio egocentrismo, segundo informou aos seus biógrafos.

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              Imagem 17 – Composição Cubista - Tinta da China e guache sobre cartão – 54,9 x 74,1 cm - 1922-1923.

         Quando os pais admitiram o seu talento, mandaram-no passar um tempo na casa de um amigo, Ramón Pichot, um abastado conhecedor de arte, e também pintor impressionista. Os pais queriam contribuir para melhorar a formação artística de Dali.

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         Imagem 18 – Retrato do vioncelista Ricardo Pichot (feito por Dali) – óleo sobre tela, 61,5 x 49 cm – 1920.

         O tempo que Dali permaneceu com esta família foi de forte influência artística. Neste período ele desenvolveu grande parte das suas fantasias eróticas, presentes nas suas composições surrealistas posteriores.

         Quando se referia à engrenagem do moinho da casa de Pichot, enfatizava sua forte atração referente à torre. Aquele local era considerado por Dali como um espaço sagrado, assemelhado ao centro do seu mundo.

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Imagem 17 – A horta de Llané – óleo sobre tela, 40 x 50 - 1920-1921 e Grande masturbação planar que aparece atrás das arcadas – óleo sobre. cobre, 14 x 19 cm – 1981.

         Neste período, todos os dias pela manhã Dali cumpria um dos seus ritos que principiava. Uma fantasia exibicionista na presença da empregada doméstica da casa derramava sobre o próprio peito uma caneca com leite com café muito quente. Com este procedimento ele atraia a atenção da doméstica, e vivenciava a sensação masoquista da dor, afirmando que gostava muito.

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                    Imagem 20 – O menino doente, auto retrato – óleo e guache sobre cartão – 57 x 51 cm – 1923.

          Em seguida o seu ritual exigia uma visita ao estúdio, que ficava localizado no topo da casa, espaço destinado para ele pintar. Trabalhando nas suas produções pictóricas realizava invenções e reinvenções do impressionismo, fazendo nascer e renascer a própria estética megalomaníaca, como afirmou em seus depoimentos.

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                       Imagem 21 – Eco morfológico – óleo sobre madeira, 65 x54 cm – 1934 – 1936.

         Antes de deixar a casa do amigo Pichot, encontrou num baú que estavam na torre do celeiro, uma coroa de metal e uma velha muleta. Esta descoberta foi sentida como muito excitante, pois imaginava que a coroa e a muleta estavam carregadas de fetiche, e com isto queria explorar melhor os seus significados.

         Ainda neste período conheceu uma mulher de opulentos seios. A atração favoreceu nele uma fixação furtiva nestes seios, levando-o a fantasiar os mesmos espetados na parte superior de uma muleta.

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                              Imagem 22 – O sinal de angústia - óleo sobre madeira, 22,2 x 16,5 cm – 1934.

        Para concretizar a sua fantasia buscou várias artimanhas, encontrou alguns melões maduros no pé, apanhando dois que foram enterrados pela parte mole e carnuda na muleta. O melão começou a escorrer e pingar seu sumo sobre Dali, cobrindo-o com a doçura da fruta, simbolizando o leite da sua fantasia.

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                               Imagem 23 – O espectro e o fantasma - óleo sobre tela, 100 x 73 cm – 1934.

        Esta muleta foi a fonte dos prazeres clandestinos, que nunca deixou de  acompanhar o artista. Ela apareceu como motivo fundamental, usado e transformado na sua pintura. Foi como o fruto da sua obsessão.

         Dali afirmava que neste contexto artístico teve o seu primeiro contato com a teoria da estética antiacadêmica e revolucionária.

        Neste texto, com linguagem direta e sem sofisticação, apresentei os primeiros anos vivenciados por Dali e utilizei imagens realizadas pelo artista durante a sua existência, associadas às experiências na infância e adolescência.

Bibliografia utilizada:

DALI, Salvador - VIDA SECRETA DE SALVADOR DALÍ - Figueres, Gerona: Dasa Edicions, 1981.

DALI, Salvador - DIARIO DE UN GENIO - Barcelona: Tusquets Ediciones, 1984.

DALÍ, Salvador y PARINAUD, A - CONFESIONES INCONFESABLES - Barcelona: Editorial Bruguera, 1975.

DESCHARNES, Robert e NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904-1989 - A OBRA PINTADA 1904-1946 - Germany: Benedikt Taschen, 1997.

GIBSON, Ian – LA VIDA DESAFORADA DE SALVADOR DALI – Barcelona: Anagrama Editorial, 1998.

LOW, Adam – SALVADOR DALI – Filme: Visual na Arte, Madrid: Visual Ediciones, 1994.

MADDOX, Conroy - SALVADOR DALI 1904-1989: O GÊNIO EXCÊNTRICO - Germany: Benedikt Taschen, 1993.

NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904 - 1989 - Germany: Benedikt Taschen, 1996.

PAUWELS, Louis - LES PASSIONS SELON DALI - Paris: Denoël Ed., 1968.

Sites da Internet:

ROUMEGUÈRE, Pierre – O MITO DIOSCÚRICO E ESTÉTICO DE DALI – http:www.galeon.com/xcient/canibalismo.html ( consultado em 02-11-2006)

ROUMEGUÈRE, Pierre – CANIBALISMO Y ESTÉTICA: del canibalismo paranóico de la gastro-estética

ANAMORFOSES DE SALVADOR DALI

                                                                                                     CLAUDETE RIBEIRO

Compreender a obra de Salvador Dali é sempre um grande desafio. Apesar de o artista ter produzido obras de rara beleza, as temáticas apresentadas são muito complexas para serem decifradas. No intuito de tornar esta compreensão um pouco mais efetiva, pretendo refletir, neste texto, parte da produção pictórica de Dali, que considero contaminada pelas suas marcas existenciais e submetida ao procedimento surrealista e ao método paranóico crítico.

As telas de Dali são carregadas de muitos símbolos nem sempre identificáveis. Esta simbologia é decorrente do método paranóico crítico e das expressões surrealistas, emergindo do trabalho do artista quase sempre sobreposta a um fundo bem identificável, já que percebemos cidades, praias, e um colorido próximo do azul do céu ou do mar. É marcante na obra de Dali o procedimento gestáltico para apresentar seus conteúdos fantasmáticos, destacando-os como figura sobre um fundo sempre reconhecível e aproximado ao seu prazer vivido na infância nas praias de Cadaqués e Port Ligat.

     clip_image002 imagem 1 - Dali em Cadaqués

O surrealismo foi por excelência uma corrente artística moderna da representação do irracional, visando à renovação de todos os valores. Este movimento artístico que surgiu em 1924 proclamava que a imaginação se manifestasse livremente, sem o freio do espírito crítico. Os surrealistas deixavam o mundo real para penetrar no irreal, considerando a emoção mais profunda do ser em todas as possibilidades de expressão, com a aproximação do fantástico, quando a razão humana perde o seu controle.

Muito envolvido com o surrealismo, Salvador Dali desvelava pictoricamente os seus fantasmas inconscientes e produzia temas referentes aos seus sonhos, a partir do método paranóico crítico. Este método resumia uma atividade paranóica espontânea e irracional, baseado na associação interpretativa e crítica dos fenômenos delirantes.

A imagem inicialmente apresentada é o primeiro quadro de Dali, genuinamente surrealista. Anote-se que os seus elementos escatológicos incomodaram muito os próprios surrealistas.

  clip_image004imagem 2 - O jogo Lúgubre - 1929 – óleo e colagem sobre cartão, 44,4 x 30,3 cm – Paris - coleção particular –

O artista realizou a sua produção surrealista para evidenciar o desprezo pelas construções refletidas e seus encadeamentos lógicos. Defendia a ativação sistemática do inconsciente, do sonho, da fantasia e dos estados mórbidos, valendo-se freqüentemente da psicanálise.

As formulações psicanalíticas de Freud sobre o inconsciente favoreceram em Dali a estruturação do seu método, que transitava dentro do surrealismo, com as expressões pictóricas para os seus temas por anamorfoses.

Entende-se por anamorfose a deformação perceptiva de algo no sistema visual, que é tornada irreconhecível. A arte de representar pictoricamente essa imagem ou figura ocorre quando ela é observada frontalmente, parecendo distorcida ou mesmo irreconhecível, mas tornando-se legível quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, com o uso de lentes especiais ou por um dispositivo reconstituinte.

clip_image006  imagem 3 - Aparição de um rosto e uma fruteira numa praia – 1938 – óleo sobre tela – 114 x 143,8 cm – Hartford – coleção particular –

Observando esta tela "A aparição de um rosto e uma fruteira numa praia" por exemplo, verifico que nesta anamorfose há vários motivos que se combinam formando imagens duplas, o pé da fruteira é, ao mesmo tempo, as costas da mulher e, além disso, forma o seu rosto. A cabeça do cão é uma parte da praia e a parte central do animal é composta por frutos. Para Dali a idéia dominante é deixar surgirem várias imagens sucessivamente, até que se tenha um número de imagens na restrita capacidade paranóica da razão.

       clip_image008 imagem 4 - A estação de trem de Perpinhan – 1965 – óleo sobre tela – 295 x 406 cm – Colônia – Museu Ludwig

Nesta pintura A estação de trem de Perpinhan o artista enfatiza o centro dela, no intuito de pintar uma tela em cujo espaço demonstrasse a verdadeira terceira dimensão. Neste trabalho, Gala olha Dali que a percebe como “Leda” a rainha de Esparta e mãe dos Dióscuros ou filhos de Zeus, Castor e Pólux. Gala se volta para o topo da cena como se estivesse num estado de anti-gravitação. Na obra estão também os dois personagens do Angelus de Millet em estado de hibernação, perante um céu que se transforma numa gigantesca cruz de Malta, no centro da estação de Perpinhan para o qual de acordo com o artista, converge todo o Universo.

Esta é uma produção da fase mística de Dali cujas temáticas não rompem com o método paranóico crítico, mas enfatizam a sua profunda intuição, realizada por uma comunicação imediata com o todo, numa visão absoluta da verdade e da graça divina. Representa o êxtase de Deus no homem e apresenta a noção simbólica de duplo por meio de Gala e Dali, Castor e Pólux, Dali e o irmão morto.

A fixação do artista em temas que o instigassem a refletir o simbólico e o mítico fantasmático era proveniente da sua própria história na relação com o irmão morto. Esta fixação o levara escrever em 1938, “O trágico Mito do Ângelus de Millet”. Foi a partir de um estudo científico sobre a tela de Millet, quando ela foi submetida ao exame de Raios-X, que se revelaram evidencias de um retoque na tela para esconder um filho morto do casal de camponeses debaixo da terra. Isto fez com que Dali percebesse esta cena forte como chocante, próxima daquilo que acontecera com ele quando os pais enterraram seu irmão, fixando-se neste tema pela aproximação com a sua existência.

         clip_image010   imagem 5 - O Angelus - Jean François Millet – 1859 – óleo sobre tela – 55,5 x 66 cm – Paris – Museu do Louvre

A imagem do Ângelus de Jean François Millet inspirou Dali para uma série de releituras, pois este conteúdo presente nas suas alucinações fantásticas direcionava-lhe para este tema. Ele sempre acreditou que havia algo mais nesta tela, o elemento fantasmático da criança morta, motivo que o levou realizar uma série de trabalhos com as suas interpretações paranóicas críticas.

         clip_image012  imagem 6 - Angelus Arquitetônico - 1933 – óleo sobre tela – 73 x 61 cm – Madrid – Museu Nacional da Rainha Sofia

O mito trágico do Angelus era uma imagem obsessiva e muito persistente nos trabalhos de Dali, considerada perturbadora, enigmática e rica de pensamentos inconscientes.

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imagem 7 - Reminiscência Arqueológica de ‘Angelus de Millet’ – 1935 – óleo sobre madeira – 32 x 39 cm – S. Petersburg – Museu Salvador Dali

Esta tela do Ângelus foi explicada pelo artista como um fantasma ou delírio geológico, extraído de um passeio que fez ao Cabo de Creus, no nordeste da Catalunha, quando imaginou duas esculturas nas rochas. Tratava-se de dois personagens, um homem e uma mulher, cujos pormenores foram apagados pela erosão decorrente da sua origem muito recuada no tempo. A figura do homem é a mais deformada pela ação do tempo, pois se apresentava como um bloco vago informando tratar-se de uma silhueta masculina angustiada. Os dois corpos abertos na praia de Por Ligat indicam, que as duas esculturas têm entradas na base, podendo tratar-se de duas torres. Observando este cenário estão uma criança e seu pai, refletindo a imagem fantástica visualizada na infância do artista criança junto do seu pai.

      clip_image016  imagem 8 - Burro apodrecido - 1928 – óleo, areia, partículas de vidro, sobre madeira – 61 x 50 cm – Paris – coleção particular -

Nesta obra "Burro apodrecido" Dali realiza uma pré-figuração para uma das seqüências do filme de Luis Buñuel, O Cão Andaluz, cuja imagem dupla torna difícil e incompreensível a sua interpretação imediata, porque apresenta dois movimentos sucessivos, a interpretação e o delírio.

As imagens duplas desta tela podem ser percebidas, se forem destacadas do fundo, tornando legível o contorno de uma mulher dormindo, se for vista de um determinado ângulo ao ser colocada numa rotação de 180º. Destacadas do fundo, também, podem ser identificadas as imagens do burro apodrecido e do leão invisível, todos no cenário de fundo de uma praia da Catalunha.

         clip_image018  imagem 9 – Espanha - 1938 - óleo sobre tela - 91,8 x 60,2 cm – Roterdam – Museu Boyman- van – Beuningen -

A tela Espanha foi pintada como a premunição da guerra em Dali. Nela o artista representa personagens duplas, visíveis no primeiro plano. Trata-se de um enorme corpo humano feminino, parecendo um enorme formigueiro de braços e pernas esmagando-se mutuamente. Há um grupo de soldados lutando que se constituem no rosto da mulher, desvelando-se para o artista num manifesto por analogias.

Apesar de Dali se considerar apolítico, a guerra civil gravou no artista o horror violento desta revolução. Segundo ele, a imagem foi retratada por espasmos convulsivos para reencontrar elementos perdidos da tradição, na busca de uma fé. A Espanha martirizada nas alucinações de Dali era representada com o odor de carne esquartejada e queimada espiritualmente, misturando-se com o cheiro de suor e morte. O desastre da guerra que assolava a Espanha exacerbou em Dali a sua paixão estética, postura que para muitos foi vista como frivolidade.

Toureiro alucinógeno é a maior obra de Dali, ela foi construída por elementos variados a partir da dualidade da imagem.

         clip_image020    imagem 10 - Toureiro alucinógeno – 1967-70 – óleo sobre tela – 398,8 x 2,99,7 cm – St. Petersburg – Museu Salvador Dali -

Nesta obra o artista provoca uma ilusão no espaço, produzindo nele os temas que remetem a outras obras já realizadas pelo artista, como a Vênus de Milo, Dali criança observando a cena, a abelha, o touro, Gala e outras. Esta tela é apresentada por várias metáforas que decorrem do procedimento paranóico crítico, desvelando um espaço com poder criador - destruidor. Ao produzir esta obra o artista registrou uma ilusão lúcida, justapondo imagens dissimuladamente, trazendo nos elementos centrais o rosto de Dali, ponto de partida e fio condutor para a sua leitura.

O tema da tauromaquia não é comum nos trabalhos do artista, mas aqui ele apresenta uma temática codificada, indicando que o toureiro está prestes a ser morto, pois apresenta uma aparência serena, própria de uma estátua funerária, provavelmente, para exorcizar nele o fantasma do medo da morte.

     clip_image022   imagem 11 - Quadrante central do Toureiro alucinógeno

Se dividirmos a tela do Toureiro alucinógeno em doze quadrantes, pode-se observar que cada quadrante indica um novo quadro, ou então pinturas que já foram realizadas por Dali.

          clip_image024   imagem 12 - Toureiro alucinógeno dividido em 12 quadrantes

No último quadrante inferior da direita está o Dali menino, cujo campo de visão abarca o conjunto da obra, parecendo extasiar esta criança. A Vênus gigante e as pequenas, as moscas reais, as rosas e o rosto de Gala. Este rosto no alto da tela se assemelha a um Cristo estabelecendo um olhar diagonal com a criança na base da tela e indica a sacralidade mítica do tema no olhar de Dali. A Vênus gigante é a presença da matrona na grandiosa arquitetura da arena, e este é um cenário da mitologia pessoal do artista, já visto em outro contexto por ele retratado.

Segundo Dali trata-se de uma fantasia inconsciente materializada, representada num mundo caótico proveniente do seu estado de alucinação que toma forma.

        clip_image026   imagem 13 - último quadrante inferior direita do Toureiro alucinógeno

Apesar das temáticas do artista serem marcadas por fatos experienciados, como se pode observar, regularmente no último plano das imagens apresentadas neste artigo, quase sempre se vê uma praia, que pode ser Cadaqués, ou Port Ligat, ou ainda, o Cabo de Creus. Todos estes espaços fazem parte da história de Dali, localizados na Catalunha e que o artista preservou nas suas imagens mentais.

clip_image028  imagem 14 - Litoral da Catalunha – Cadaqués – Port Ligat

As temáticas anamorfoseadas desenvolvidas pelo artista, nas obras aqui apresentadas, evidenciam conteúdos que marcaram vários momentos vividos por ele, ocorrendo de forma alucinada e expressando seus sonhos ou fantasias inconscientes, mas sobrepondo-se a um fundo imagético, que traz recordações muito boas da vida do artista: as praias onde passou a sua infância nos momentos de lazer e prazer ou então a praia onde escolheu viver com Gala os seus melhores momentos, Port Ligat.

Nas obras aqui apresentadas, Dali explora a cor para dar vida às imagens, usando os azuis que indicam a sabedoria e equilíbrio, os amarelos apontando a energia vital, os terrosos associados à existência e vida, bem como os vermelhos eufóricos próprios da personalidade excêntrica do artista.

De acordo com o processo gestáltico da percepção é o mecanismo psicológico da simplificação que está presente na apreensão imediata do percebedor. Esta é uma regra geral para se identificar o que está no entorno dos seres humanos. Entretanto, na obra de Salvador Dali a ocorrência deste processo perceptual é muito difícil, porque a complexidade do trabalho paranóico crítico impede a percepção por simplicidade.

Como ele tinha o compromisso na sua produção com o Surrealismo e o realizava a partir do próprio inconsciente, esta produção artística exige do leitor uma viagem perceptiva que necessita exercitar o seu olhar fruidor.

Procurei demonstrar neste texto que para ler a obra de Dali é necessário um exercício perceptual bastante complexo. A riqueza da obra e a beleza das cores e dos temas são os elementos componentes, cujo conteúdo tem por desafio compreender o que o artista catalão quis expressar para o mundo, quando afirmava “O Surrealismo sou eu”.

Bibliografia utilizada:

DESCHARNES, Robert e NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904-1989 - A OBRA PINTADA 1904-1946 - Germany: Benedikt Taschen, 1997.

GIBSON, Ian – LA VIDA DESAFORADA DE SALVADOR DALI – Barcelona: Anagrama Editorial, 1998.

GIBSON, Ian - LORCA-DALI. EL AMOR QUE NO PUDO SER - Barcelona: Plaza & Janés Editores, 2000.

MADDOX, Conroy - SALVADOR DALI 1904-1989: O GÊNIO EXCÊNTRICO - Germany: Benedikt Taschen, 1993.

NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904 - 1989 - Germany: Benedikt Taschen, 1996.

terça-feira, 30 de junho de 2015

 

DALI E A ESTÉTICA DA ORALIDADE

Salvador Dali realiza um trabalho pictórico instigante, principalmente quando este conteúdo ultrapassa a fronteira do real, penetrando no espaço surreal. Neste artigo me proponho a refletir a temática do canibalismo estético desenvolvido pelo método paranóico crítico, que considero associado com a oralidade do artista.

Como já foi dito em artigo anterior Dali nasceu após a morte de um irmão que teve o nome de Salvador, assim como do seu pai e avô paterno. Ele viveu como filho único durante quatro anos, quando nasceu a irmã Ana Maria. Durante este período ele teve toda a atenção materna, tendo como experiência um forte desejo de amor, que seria sublimado a partir do seu encontro com Gala.

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imagem 1 – fotografia de Dali com 1 ano.

Quando estava com quase vinte anos, em 16 de fevereiro de 1921 Dali perdeu sua mãe Felipa vítima de câncer. O impacto desta perda foi devastador. Desesperado, Dali fez um juramento: ele arrebataria a mãe da morte com as espadas de luz que algum dia brilharia brutalmente em torno do seu glorioso nome. E foi assim que aconteceu, quando o artista começou a ter sucesso. A partir do seu encontro com Gala, ele usou um mecanismo de defesa do ego convertendo o afeto da mãe para Gala, que passou a exercer o papel substituto da sua figura materna.

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imagem 2 – DALI - Retrato da mãe de Dali, Dona Felipa Domenech – óleo sobre tela, 40,1 x 27,2 cm, 1920, coleção particular.

Este foi o único retrato da mãe pintado por Dali durante a sua existência. Ele realizou outras obras homenageando-a, inclusive uma que lhe valeu grande rancor do pai por não concordar com o trabalho produzido pelo filho.

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Imagem 3 – DALI – Enigma do desejo – Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe – óleo sobre tela, 110 x 150,7 cm, Munique, Staatsgalerie moderner Kunst, 1929.

Nesta obra O enigma do desejo Dali desvela a necessidade de reeditar a figura materna, aquela que o alimentara e protegera durante os seus primeiros dezenove anos. Neste enigma ele repete trinta e quatro vezes a expressão “minha mãe”, reveladora da necessidade desta reedição do amor e proteção materna.

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imagem 4 – Recorte do Enigma do desejo, Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe.

Estudando mais atentamente a obra de Dali observa-se na sua expressão plástica algumas fixações da oralidade na sua existência, proveniente de uma estética canibalista retratada a partir do método paranóico crítico.

A postura do artista desvela esta oralidade impregnada no universo Daliniano, cuja origem do gênio criador sugere uma oralidade semelhantemente a um bebê não desmamado. Esta fixação no precoce desenvolvimento do artista aparece dissimulada pelos seus escritos em A vida secreta de Salvador Dali.

Neste trabalho ele evidencia um anseio frenético e constante da necessidade instintiva para “... comer tudo, comer o que for, sempre, em toda a parte e completamente”. Na mesma obra reitera ”... tudo que é comestível me excita ... eu morderia todas as coisas: beterrabas, pêssegos, cebolas”; e acrescenta “... aquela casa em Cadaqués onde morávamos, eu sonhei em construir suas paredes de pão. Eu gostaria que todas as cadeiras fossem de chocolate. Mesmo hoje ainda não desisti dessa idéia ...”.

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imagem 5 – DALI – Cesto de Pão – antes da morte que a mácula – óleo, material e dimensões desconhecidos, coleção particular.

A oralidade paranóica do artista fica evidente, apesar do desejo de crescer, tornar-se violento e irreprimível. A própria comestibilidade deixará de lhe impor limites e obstáculos para a concretização desta oralidade devoradora, pois desejaria comer tudo. “... não há nada que não possa ser comido: ... esta já era a minha expressão favorita ... minhas obras comestíveis, intestinais e digestivas foram intensificadas ... eu queria comer tudo e planejava construir uma grande mesa de ovos duros que pudessem ser consumidos...”.

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imagem 6 – DALI – Pão francês médio com dois ovos estrelados a cavalo, sem o prato, tentando sodomizar um bocado de pão português – óleo sobre tela, 16,8 x 32 cm, Roterdã, Museu Boymans-van Beuningen, 1932.

Comer tudo! Reside aí o mais precoce e essencial fantasma obsessivo da experiência Daliniana. Esta é a necessidade de internalizar tudo o que é comestível para suprir a sua carência, para alimentá-lo de afeto.

Dali construiu fora da sua casa de Port Lligat um espaço destinado e coroado com dois ovos enormes, e contendo dentro a ‘sala do ovo’.

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imagem 7 – Imagem extraída do filme Salvador Dali dirigido por Adam Low.

Este cenário dedicado ao simbolismo dos gêmeos divinos, era um verdadeiro altar do templo ‘dioscúrico’, referente ao mito dos dióscoros. Um deles, Castor que é mortal e se aproxima do irmão morto de Dali ou de Gala, a substituta da mãe e Pólux que é imortal e vai além do espaço e do tempo, é o próprio Dali.

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imagem 8 - Imagem extraída do filme Salvador Dali dirigido por Adam Low.

Em 1965 após, tomar conhecimento da tese realizada pelo seu psiquiatra Pierre Roumeguère que explorava o tema mitológico e arquetípico dioscúrico dos gêmeos Castor e Pólux, Dali comprovou a sua experiência dramática vivida com referência ao seu próprio mito trágico: “... senti uma emoção incomparável ao ouvir a verdade absoluta pela primeira vez: uma tese psicanalítica revelou para mim o drama que se encontra na base de minha estrutura trágica. Estava relacionado com a presença inevitável, nas profundezas de mim mesmo, de meu irmão morto, que meus pais adoravam tanto, que no meu nascimento, deram-me o mesmo primeiro nome, Salvador”.

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imagem 9 – O irmão de Dali, Salvador Galo Anselmo que morreu com vinte e um meses em agosto de 1903.

Sempre que ele se deparava com a imagem do irmão morto sentia “... um choque foi muito violento ... os terrores de que eu era preso cada vez que penetrava no quarto de meus pais e quando olhava a fotografia de meu falecido irmão – uma criança muito bonita, toda ‘engalanada’, cujo rosto havia sido retocado, ... a noite inteira eu visualizava esse irmão ideal num estado de total putrefação. Eu só adormecia quando pensava na minha própria morte e ao aceitar a idéia de me encontrar no caixão, descansando finalmente ... A experiência era visceral e justificava a estrutura mental do meu ser ...”.

Esta fantasia revela a percepção pelo artista do irmão morto, considerando-se Pólux que atormentado pela perda do irmão, suplica ao seu pai, Júpiter, que lhe devolva o companheiro Castor. Comovido com tamanha fraternidade, o senhor dos Deuses propõe uma única solução para salvar o jovem: Pólux deveria dividir a sua imortalidade com o irmão, alternando com ele um dia de vida e outro de morte.

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imagem 10 – DALI – Encontro da ilusão e do momento parado – dois ovos estrelados apresentados numa colher – óleo sobre tela, 23 x 15 cm, Nova Iorque, Coleção Particular, 1932.

Este caráter reversível e recíproco das suas fantasias sobre a vida e a morte revela uma relação projetada sobre os outros, estabelecendo o mecanismo do perseguido e perseguidor, próprio de uma paranóia psicótica, proposta pelo método de representação paranóico crítico.

“... dizer que eu penso incessantemente sobre a morte não é o bastante. Eu carrego em mim a sua presença fabulosa. Com mais força ainda no momento de comer. A realidade da morte aparece diante de mim a cada refeição e se impõe a si mesma ... assim que o odor das sardinhas fritas chega às minhas narinas, eu me volto para o cemitério, e a minha felicidade gastronômica é aumentada pela consciência da morte. Meu apetite põe as lápides abaixo. Ao degustar a carne mais limpa que vem do mar, eu digo a mim mesmo: ‘eu não estou morto, eu vivo, eu vivo’, e salivo duplamente, também saboreando esta evidência maravilhosa ... doravante passarei a degustar qualquer sardinha com especial apreciação se ao mesmo tempo estiver pensando em todos os meus amigos que estão mortos, de preferência a tiros ou martirizados ... por sua vez, se eu comer a sardinha com um bom apetite, é porque o faço em nome dos mortos. Em nome dos mortos, eu a como vorazmente ...”.

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imagem 11 – DALI – Telefone num prato com três sardinhas assadas no fim de setembro – óleo sobre tela, 45,7 x 54,9 cm, Sampetersburg, The Salvador Dali Museum, 1939.

Se a relação oral de Dali é a base da sua relação com o mundo exterior, então as suas relações com os outros serão profundamente ‘canibais’. “... minha fixação no mundo foi conseqüentemente formada pelo caminho triunfal de minha boca ... o maior refinamento gastronômico é o de comer seres ‘cozidos e vivos’ ...”.

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imagem 12 – DALI – Canibalismo de outono – óleo sobre tela, 65 x 65,2 cm, Londres, The Tate Gallery, 1936.

Referia-se a si mesmo como “... queijo Gruyère é a minha personalidade ...”. Sua identidade era associada ao alimento que poderia ser comido a qualquer momento na sua fantasia persecutória e paranóica.

“A sublime lei fundamental de nossa religião católica, apostólica, romana é engolir Deus vivo... um rei deveria ser como um bom queijo: bem maduro ...”. Estes são os aspectos reversíveis da relação cíclica de Dali com a vida surreal dos grandes mitos, o Deus e o Rei, ambos próprios para serem comidos ou internalizados, desvelando a sua oralidade devoradora;

COMER X SER COMIDO

Na sua conduta conjugal Dali sugere a extensão deste desejo para o arrebatamento do cosmos, que adquire o mesmo sabor que o do corpo glorioso e sublime do seu cônjuge gêmeo: Gala. Ele desenvolve um verdadeiro festival de canibalismo em seus escritos gastro-estéticos, estendendo ao pai via Gala o desejo de:

COMER X SER COMIDO

“... Sob a forma daquela pastilha sagrada ... a hóstia consagrada da comunhão paterna ... Gala tornou-se uma representação sublime e deliciosa do meu pai ... Gala assumiu um valor sagrado; ela vinculou através de Picasso, meu amor à paixão de meu pai e à paixão estética ... assim eu tive a oportunidade de degustar meu pai em Gala em pequenos bocados suculentos, enquanto ao mesmo tempo concordava em ser devorado por Gala ... e que nossas paixões sejam devoradoras, mas tenhamos um apetite ainda maior para viver a fim de devorá-las ...”

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imagem 13 – DALI – Retrato de Gala com duas costeletas de cordeiro em equilíbrio sobre o ombro – óleo sobre madeira de oliveira, 6,80 x 8,80 m, 1933.

A gastro-estética Daliniana ligada à sua oralidade também devorante, está relacionada com o tema da morte do devorado. Esta fixação canibalesca que traz o fantasma do casamento místico desta oralidade com a morte compreende:

COMER X SER COMIDO

COMER X MORRER

O segredo de Dali, velado atrás da sua oralidade reside em estabelecer uma estética excêntrica, pois seus julgamentos críticos da arte procedem sempre da mesma oralidade delirante e obsessiva.

Cada um de seus escritos sobre o surrealismo provém da mesma visão estética ou da mesma alucinação oral, da sua fixação no peito materno, no qual ele encontra o que é comestível, o ser comido, pela mãe ou pelo irmão ou o aspecto glutão, voraz, canibal, o comer a mãe, seu irmão e Gala.

Seu método resume uma atividade paranóica espontânea e irracional, baseado na associação interpretativa do próprio desenvolvimento e dos fenômenos delirantes. Com este método Dali decifra suas fantasias catequizadas e os símbolos das próprias visões surreais e apavorantes, povoadas de imagens transcendentes, eróticas e místicas.

Bibliografia consultada:

DALI, Salvador - VIDA SECRETA DE SALVADOR DALÍ - Figueres, Gerona: Dasa Edicions, 1981.

DALI, Salvador - DIARIO DE UN GENIO - Barcelona: Tusquets Ediciones, 1984.

DALÍ, Salvador y PARINAUD, A - CONFESIONES INCONFESABLES - Barcelona: Editorial Bruguera, 1975.

DESCHARNES, Robert e NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904-1989 - A OBRA PINTADA 1904-1946 - Germany: Benedikt Taschen, 1997.

GIBSON, Ian – LA VIDA DESAFORADA DE SALVADOR DALI – Barcelona: Anagrama Editorial, 1998.

LOW, Adam – SALVADOR DALI – Filme: Visual na Arte, Madrid: Visual Ediciones, 1994.

MADDOX, Conroy - SALVADOR DALI 1904-1989: O GÊNIO EXCÊNTRICO - Germany: Benedikt Taschen, 1993.

NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904 - 1989 - Germany: Benedikt Taschen, 1996.

PAUWELS, Louis - LES PASSIONS SELON DALI - Paris: Denoël Ed., 1968.

Sites da Internet:

ROUMEGUÈRE, Pierre – O MITO DIOSCÚRICO E ESTÉTICO DE DALI – http:www.galeon.com/xcient/canibalismo.html ( consultado em 02-11-2006)

ROUMEGUÈRE, Pierre – CANIBALISMO Y ESTÉTICA: del canibalismo paranóico de la gastro-estética – http:www.galeon.com/scient/canibalismo.html

(consultado em 01-11-2006)