terça-feira, 30 de junho de 2015

 

DALI E A ESTÉTICA DA ORALIDADE

Salvador Dali realiza um trabalho pictórico instigante, principalmente quando este conteúdo ultrapassa a fronteira do real, penetrando no espaço surreal. Neste artigo me proponho a refletir a temática do canibalismo estético desenvolvido pelo método paranóico crítico, que considero associado com a oralidade do artista.

Como já foi dito em artigo anterior Dali nasceu após a morte de um irmão que teve o nome de Salvador, assim como do seu pai e avô paterno. Ele viveu como filho único durante quatro anos, quando nasceu a irmã Ana Maria. Durante este período ele teve toda a atenção materna, tendo como experiência um forte desejo de amor, que seria sublimado a partir do seu encontro com Gala.

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imagem 1 – fotografia de Dali com 1 ano.

Quando estava com quase vinte anos, em 16 de fevereiro de 1921 Dali perdeu sua mãe Felipa vítima de câncer. O impacto desta perda foi devastador. Desesperado, Dali fez um juramento: ele arrebataria a mãe da morte com as espadas de luz que algum dia brilharia brutalmente em torno do seu glorioso nome. E foi assim que aconteceu, quando o artista começou a ter sucesso. A partir do seu encontro com Gala, ele usou um mecanismo de defesa do ego convertendo o afeto da mãe para Gala, que passou a exercer o papel substituto da sua figura materna.

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imagem 2 – DALI - Retrato da mãe de Dali, Dona Felipa Domenech – óleo sobre tela, 40,1 x 27,2 cm, 1920, coleção particular.

Este foi o único retrato da mãe pintado por Dali durante a sua existência. Ele realizou outras obras homenageando-a, inclusive uma que lhe valeu grande rancor do pai por não concordar com o trabalho produzido pelo filho.

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Imagem 3 – DALI – Enigma do desejo – Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe – óleo sobre tela, 110 x 150,7 cm, Munique, Staatsgalerie moderner Kunst, 1929.

Nesta obra O enigma do desejo Dali desvela a necessidade de reeditar a figura materna, aquela que o alimentara e protegera durante os seus primeiros dezenove anos. Neste enigma ele repete trinta e quatro vezes a expressão “minha mãe”, reveladora da necessidade desta reedição do amor e proteção materna.

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imagem 4 – Recorte do Enigma do desejo, Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe.

Estudando mais atentamente a obra de Dali observa-se na sua expressão plástica algumas fixações da oralidade na sua existência, proveniente de uma estética canibalista retratada a partir do método paranóico crítico.

A postura do artista desvela esta oralidade impregnada no universo Daliniano, cuja origem do gênio criador sugere uma oralidade semelhantemente a um bebê não desmamado. Esta fixação no precoce desenvolvimento do artista aparece dissimulada pelos seus escritos em A vida secreta de Salvador Dali.

Neste trabalho ele evidencia um anseio frenético e constante da necessidade instintiva para “... comer tudo, comer o que for, sempre, em toda a parte e completamente”. Na mesma obra reitera ”... tudo que é comestível me excita ... eu morderia todas as coisas: beterrabas, pêssegos, cebolas”; e acrescenta “... aquela casa em Cadaqués onde morávamos, eu sonhei em construir suas paredes de pão. Eu gostaria que todas as cadeiras fossem de chocolate. Mesmo hoje ainda não desisti dessa idéia ...”.

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imagem 5 – DALI – Cesto de Pão – antes da morte que a mácula – óleo, material e dimensões desconhecidos, coleção particular.

A oralidade paranóica do artista fica evidente, apesar do desejo de crescer, tornar-se violento e irreprimível. A própria comestibilidade deixará de lhe impor limites e obstáculos para a concretização desta oralidade devoradora, pois desejaria comer tudo. “... não há nada que não possa ser comido: ... esta já era a minha expressão favorita ... minhas obras comestíveis, intestinais e digestivas foram intensificadas ... eu queria comer tudo e planejava construir uma grande mesa de ovos duros que pudessem ser consumidos...”.

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imagem 6 – DALI – Pão francês médio com dois ovos estrelados a cavalo, sem o prato, tentando sodomizar um bocado de pão português – óleo sobre tela, 16,8 x 32 cm, Roterdã, Museu Boymans-van Beuningen, 1932.

Comer tudo! Reside aí o mais precoce e essencial fantasma obsessivo da experiência Daliniana. Esta é a necessidade de internalizar tudo o que é comestível para suprir a sua carência, para alimentá-lo de afeto.

Dali construiu fora da sua casa de Port Lligat um espaço destinado e coroado com dois ovos enormes, e contendo dentro a ‘sala do ovo’.

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imagem 7 – Imagem extraída do filme Salvador Dali dirigido por Adam Low.

Este cenário dedicado ao simbolismo dos gêmeos divinos, era um verdadeiro altar do templo ‘dioscúrico’, referente ao mito dos dióscoros. Um deles, Castor que é mortal e se aproxima do irmão morto de Dali ou de Gala, a substituta da mãe e Pólux que é imortal e vai além do espaço e do tempo, é o próprio Dali.

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imagem 8 - Imagem extraída do filme Salvador Dali dirigido por Adam Low.

Em 1965 após, tomar conhecimento da tese realizada pelo seu psiquiatra Pierre Roumeguère que explorava o tema mitológico e arquetípico dioscúrico dos gêmeos Castor e Pólux, Dali comprovou a sua experiência dramática vivida com referência ao seu próprio mito trágico: “... senti uma emoção incomparável ao ouvir a verdade absoluta pela primeira vez: uma tese psicanalítica revelou para mim o drama que se encontra na base de minha estrutura trágica. Estava relacionado com a presença inevitável, nas profundezas de mim mesmo, de meu irmão morto, que meus pais adoravam tanto, que no meu nascimento, deram-me o mesmo primeiro nome, Salvador”.

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imagem 9 – O irmão de Dali, Salvador Galo Anselmo que morreu com vinte e um meses em agosto de 1903.

Sempre que ele se deparava com a imagem do irmão morto sentia “... um choque foi muito violento ... os terrores de que eu era preso cada vez que penetrava no quarto de meus pais e quando olhava a fotografia de meu falecido irmão – uma criança muito bonita, toda ‘engalanada’, cujo rosto havia sido retocado, ... a noite inteira eu visualizava esse irmão ideal num estado de total putrefação. Eu só adormecia quando pensava na minha própria morte e ao aceitar a idéia de me encontrar no caixão, descansando finalmente ... A experiência era visceral e justificava a estrutura mental do meu ser ...”.

Esta fantasia revela a percepção pelo artista do irmão morto, considerando-se Pólux que atormentado pela perda do irmão, suplica ao seu pai, Júpiter, que lhe devolva o companheiro Castor. Comovido com tamanha fraternidade, o senhor dos Deuses propõe uma única solução para salvar o jovem: Pólux deveria dividir a sua imortalidade com o irmão, alternando com ele um dia de vida e outro de morte.

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imagem 10 – DALI – Encontro da ilusão e do momento parado – dois ovos estrelados apresentados numa colher – óleo sobre tela, 23 x 15 cm, Nova Iorque, Coleção Particular, 1932.

Este caráter reversível e recíproco das suas fantasias sobre a vida e a morte revela uma relação projetada sobre os outros, estabelecendo o mecanismo do perseguido e perseguidor, próprio de uma paranóia psicótica, proposta pelo método de representação paranóico crítico.

“... dizer que eu penso incessantemente sobre a morte não é o bastante. Eu carrego em mim a sua presença fabulosa. Com mais força ainda no momento de comer. A realidade da morte aparece diante de mim a cada refeição e se impõe a si mesma ... assim que o odor das sardinhas fritas chega às minhas narinas, eu me volto para o cemitério, e a minha felicidade gastronômica é aumentada pela consciência da morte. Meu apetite põe as lápides abaixo. Ao degustar a carne mais limpa que vem do mar, eu digo a mim mesmo: ‘eu não estou morto, eu vivo, eu vivo’, e salivo duplamente, também saboreando esta evidência maravilhosa ... doravante passarei a degustar qualquer sardinha com especial apreciação se ao mesmo tempo estiver pensando em todos os meus amigos que estão mortos, de preferência a tiros ou martirizados ... por sua vez, se eu comer a sardinha com um bom apetite, é porque o faço em nome dos mortos. Em nome dos mortos, eu a como vorazmente ...”.

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imagem 11 – DALI – Telefone num prato com três sardinhas assadas no fim de setembro – óleo sobre tela, 45,7 x 54,9 cm, Sampetersburg, The Salvador Dali Museum, 1939.

Se a relação oral de Dali é a base da sua relação com o mundo exterior, então as suas relações com os outros serão profundamente ‘canibais’. “... minha fixação no mundo foi conseqüentemente formada pelo caminho triunfal de minha boca ... o maior refinamento gastronômico é o de comer seres ‘cozidos e vivos’ ...”.

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imagem 12 – DALI – Canibalismo de outono – óleo sobre tela, 65 x 65,2 cm, Londres, The Tate Gallery, 1936.

Referia-se a si mesmo como “... queijo Gruyère é a minha personalidade ...”. Sua identidade era associada ao alimento que poderia ser comido a qualquer momento na sua fantasia persecutória e paranóica.

“A sublime lei fundamental de nossa religião católica, apostólica, romana é engolir Deus vivo... um rei deveria ser como um bom queijo: bem maduro ...”. Estes são os aspectos reversíveis da relação cíclica de Dali com a vida surreal dos grandes mitos, o Deus e o Rei, ambos próprios para serem comidos ou internalizados, desvelando a sua oralidade devoradora;

COMER X SER COMIDO

Na sua conduta conjugal Dali sugere a extensão deste desejo para o arrebatamento do cosmos, que adquire o mesmo sabor que o do corpo glorioso e sublime do seu cônjuge gêmeo: Gala. Ele desenvolve um verdadeiro festival de canibalismo em seus escritos gastro-estéticos, estendendo ao pai via Gala o desejo de:

COMER X SER COMIDO

“... Sob a forma daquela pastilha sagrada ... a hóstia consagrada da comunhão paterna ... Gala tornou-se uma representação sublime e deliciosa do meu pai ... Gala assumiu um valor sagrado; ela vinculou através de Picasso, meu amor à paixão de meu pai e à paixão estética ... assim eu tive a oportunidade de degustar meu pai em Gala em pequenos bocados suculentos, enquanto ao mesmo tempo concordava em ser devorado por Gala ... e que nossas paixões sejam devoradoras, mas tenhamos um apetite ainda maior para viver a fim de devorá-las ...”

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imagem 13 – DALI – Retrato de Gala com duas costeletas de cordeiro em equilíbrio sobre o ombro – óleo sobre madeira de oliveira, 6,80 x 8,80 m, 1933.

A gastro-estética Daliniana ligada à sua oralidade também devorante, está relacionada com o tema da morte do devorado. Esta fixação canibalesca que traz o fantasma do casamento místico desta oralidade com a morte compreende:

COMER X SER COMIDO

COMER X MORRER

O segredo de Dali, velado atrás da sua oralidade reside em estabelecer uma estética excêntrica, pois seus julgamentos críticos da arte procedem sempre da mesma oralidade delirante e obsessiva.

Cada um de seus escritos sobre o surrealismo provém da mesma visão estética ou da mesma alucinação oral, da sua fixação no peito materno, no qual ele encontra o que é comestível, o ser comido, pela mãe ou pelo irmão ou o aspecto glutão, voraz, canibal, o comer a mãe, seu irmão e Gala.

Seu método resume uma atividade paranóica espontânea e irracional, baseado na associação interpretativa do próprio desenvolvimento e dos fenômenos delirantes. Com este método Dali decifra suas fantasias catequizadas e os símbolos das próprias visões surreais e apavorantes, povoadas de imagens transcendentes, eróticas e místicas.

Bibliografia consultada:

DALI, Salvador - VIDA SECRETA DE SALVADOR DALÍ - Figueres, Gerona: Dasa Edicions, 1981.

DALI, Salvador - DIARIO DE UN GENIO - Barcelona: Tusquets Ediciones, 1984.

DALÍ, Salvador y PARINAUD, A - CONFESIONES INCONFESABLES - Barcelona: Editorial Bruguera, 1975.

DESCHARNES, Robert e NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904-1989 - A OBRA PINTADA 1904-1946 - Germany: Benedikt Taschen, 1997.

GIBSON, Ian – LA VIDA DESAFORADA DE SALVADOR DALI – Barcelona: Anagrama Editorial, 1998.

LOW, Adam – SALVADOR DALI – Filme: Visual na Arte, Madrid: Visual Ediciones, 1994.

MADDOX, Conroy - SALVADOR DALI 1904-1989: O GÊNIO EXCÊNTRICO - Germany: Benedikt Taschen, 1993.

NÉRET, Gilles - SALVADOR DALI 1904 - 1989 - Germany: Benedikt Taschen, 1996.

PAUWELS, Louis - LES PASSIONS SELON DALI - Paris: Denoël Ed., 1968.

Sites da Internet:

ROUMEGUÈRE, Pierre – O MITO DIOSCÚRICO E ESTÉTICO DE DALI – http:www.galeon.com/xcient/canibalismo.html ( consultado em 02-11-2006)

ROUMEGUÈRE, Pierre – CANIBALISMO Y ESTÉTICA: del canibalismo paranóico de la gastro-estética – http:www.galeon.com/scient/canibalismo.html

(consultado em 01-11-2006)

A FANTASIA DE FERNANDO DINIZ

Contar a história do artista Fernando Diniz, um mulato pobre e “louco” que produziu obras pouco conhecidas, surge neste texto em seguida ao conhecido e enriquecido Salvador Dali, primeiro artista apresentado neste Site. Ambos expressaram-se pictoricamente, sempre associados à própria existência, deixando fluir o inconsciente. Procurarei mostrar que Diniz desenvolveu suas obras, independente da própria condição social. Tanto quanto Dali, ele deixou falar artisticamente o próprio interior, mostrando que a criação artística é uma terapia que revigora o equilíbrio.

clip_image002 clip_image004 imagens 1 e 2 – Fotos de Fernando Diniz

FERNANDO DINIZ nasceu no dia 06 de dezembro de 1918, em Aratu, pequena cidade próxima de Salvador, Bahia. Seu pai faleceu quando ele era muito pequeno e sua mãe, Dona Augusta, uma pobre costureira, teve muita dificuldade para mantê-lo. Por volta dos seus quatro anos de idade, sua mãe e Fernando foram morar no Rio de Janeiro. Vivendo em pequenos quartos de casarões onde habitavam muitas famílias, desde cedo Fernando experimentou o contraste de viver entre a sua moradia e conhecer as ricas mansões de Copacabana onde sua mãe trabalhava.

clip_image006 clip_image007 imagem 3 - Casarões velhos imagem 4 - Mansões

Numa dessas mansões, Fernando passou a conviver com Violeta, filha de um rico advogado e uma mulher para quem sua mãe trabalhava. A menina lhe ensinava ler e escrever algumas palavras e os dois inventavam brincadeiras. Desta convivência, nasce em Fernando um grande afeto por Violeta. O menino mulato e pobre herdou o gosto pelo luxo e sofisticação, alimentando a fantasia de casar-se com a menina branca e rica.

Pensando ascender socialmente ele resolveu estudar, pois queria ser engenheiro. Sua fantasia de infância encontrava no ambiente suas contradições, pois Dona Augusta estimulava uma maneira ambígua no seu pensamento. Ela lhe dava informações contraditórias, dizendo que o filho era muito inteligente, que deveria estudar, com os ricos para ser um engenheiro, pois assim ele conseguiria dinheiro e tudo o que quisesse. Por outro lado, ela valorizava a condição de branco e rico, pedindo-lhe ao mesmo tempo, para que se comportasse educadamente na casa dos brancos, senão perderia o emprego. Entretanto, na impossibilidade de ser branco, o mulato Fernando, seguia as recomendações da mãe, querendo estudar para ficar rico e se casar com Violeta.

A sua trajetória, porém, foi marcada pela exclusão, com sofrida passagem e confinamento em instituições. Quando ele estava com cinco anos Dona Augusta, teve um filho com um homem branco, chamado Antônio Carlos. O pai da criança foi embora antes do seu nascimento, convivendo com a mãe por poucos dias. Sem poder criar os dois filhos, ela colocou o mais novo na Casa dos Expostos, onde a criança faleceu depois de algum tempo.

clip_image009 Imagem 5 - Casa da Roda dos Expostos

Aos nove anos de idade, pela condição de pobreza, Fernando foi aceito num asilo de Freiras, a Casa dos Meninos de Petrópolis, uma Associação Beneficente. Neste lugar lhe ensinaram Português e Matemática, mas ele não gostava do ambiente e da separação da mãe. Também não apreciava a alimentação. Ele gostava apenas dos dias de saída, que o afastava temporariamente da rigidez asilar. Como não possuía brinquedos, imaginava-os como objetos interplanetários.

clip_image011 imagem 6 - Associação Beneficente das Freiras de Petrópolis

Após dois anos no asilo, ele retornou ao Rio de Janeiro, voltando a viver com a mãe e passando a freqüentar uma escola pública. Seguiu seus estudos obtendo, invariavelmente, boas notas. Inteligente, ele foi sempre o primeiro aluno da classe. Chegou até o 1º ano científico, mas abandonou os estudos depois que teve uma grande decepção.

clip_image013 imagem 7 - Instituto de Educação no Rio de Janeiro

Quando mais nutria a idéia de se preparar para o vestibular de engenharia, Fernando ficou sabendo que Violeta havia se casado. Teve uma imensa decepção e um grande abalo emocional. As suas notas na escola foram piorando gradativamente, desistindo do curso. Também abandonou os seus cuidados corporais, passando a ficar sujo e também deliberadamente, completamente mudo. Ele ficava vagando pelas ruas, sentindo o espaço se estreitar esmagadoramente, como se os prédios fossem cair na sua cabeça. Freqüentava apenas a praia de Copacabana à noite, banhando-se nu. A psiquiatra Nise da Silveira anotou este comportamento como o “único gesto de rebeldia de toda a sua vida”.

Num domingo quando clareou surgindo o sol, sem perceber que outras pessoas chegavam à praia, escandalizadas por ele estar nu, chamaram a polícia. Reagindo contra os policiais, ele foi levado preso por atentado ao pudor e desacato às autoridades. Ficou seis meses detido. Quando foram avaliadas suas reações psicológicas, foi transferido para um manicômio judiciário, local de onde foi levado para o hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro.

clip_image015 imagem 8 - Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro

Na triste biografia de Diniz observo os mecanismos de exclusão social que encontram seu núcleo em diversas instituições que zelam pela "boa conduta". Depois que soube do casamento de Violeta, ele passou a ficar desconfiado e repetindo regularmente: "Estão telefonando para a escola para dizer que sou negro, e que um negro não pode tirar o primeiro lugar, nem ser engenheiro".

Os tratamentos a que Fernando fora submetido durante os primeiros anos de internação foram a aplicação do eletrochoques e o coma insulínico, sem que tivesse qualquer modificação. Ele passou por vários espaços de exclusão, favela, asilo de freiras, cárcere e manicômio judiciário, e finalmente o hospital psiquiátrico de onde ele nunca saiu. Seu prontuário descreve um sujeito sempre cabisbaixo, isolado e alheio ao mundo externo. O ambiente opressor, o mito familiar de ascensão social, a emissão de comentários contraditórios por parte de sua mãe, assim como, a sua frágil constituição psíquica, motivaram a sua situação.

Toda a sua pesada vida social foi piorando, a partir da internação e uso dos velhos métodos da psiquiatria clássica. Esta não manifestava interesse pelo drama das pessoas desestruturadas psiquicamente, mas apenas ao estereótipo de louco, visível pelos sintomas mais aparentes.

Em 1949, com 21 anos, depois de longo “tratamento”, começou a freqüentar as Seções de Terapêutica Ocupacional. Este lugar tornou a sua história diferente dos outros doentes mentais crônicos. Foi a partir do seu encontro com uma pessoa muito especial, a psiquiatra Doutora Nise da Silveira, que o vendo calado e retraído, convidou-o a freqüentar os ateliês de artes.

clip_image017 imagem 9 - Hospital Ocupacional Nise da Silveira

No início, quando chegava ao ateliê, não levantava a cabeça, e sua voz era muito baixa, mal se ouvia o que falava. Quando ele teve a primeira oportunidade de tocar suas mãos nos materiais de trabalho, os papéis, tintas e pincéis, suas atitudes no ateliê foram se modificando. Inicialmente saiu do mutismo e expressou seus primeiros rabiscos. Fernando passa a se re-estruturar como indivíduo, com desejos, aspirações, ambições, pintando uma estrela com linhas quebradas e justapostas, e comentando que as linhas significam inveja e ambição, dizendo, "eu sou ambicioso". Assim que lhe ofereceram a oportunidade de expressão, sua manifestação criativa se lançou rumo à consciência, em longos movimentos de idas e vindas num processo de reestruturação. A série de imagens pintadas por Diniz constituiu importante documentação sobre a força auto-curativa da sua psique. Estas pinturas representam imagens interiores de difícil apreensão. Inicialmente predominaram nas pinturas de abstração, geometria e a esquematização, procurando refúgio das vivências de exclusão que provocavam intensas contradições entre seus impulsos afetivos e os limites sociais impostos a ele.

clip_image019 imagem 10 - Figura abstrata, orgânica e inorgânica – lápis cera e óleo sobre papel - sem data.

Projetando conteúdos subjetivos que ganhavam vida, as suas pinturas eram configuradas como o caos, figuras circulares, como as mandalas.

clip_image021 imagem 11 - Figura circular - lápis cera no papel – sem data.

Produzia círculos, formas ovais, linhas sinuosas que ele chamou de ondas e, principalmente, espirais. Sua expressão plástica lhe permitia sair do turbilhão em que se encontrava. A espiral era a melhor representação desta busca por um ponto de equilíbrio.

clip_image023 imagem 12 - Figura circular, mandala - guache sobre papel, 33cm x 48cm – sem data.

Caminhando para a estilização, ele tentou realizar o que denominava como a “sabedoria que a gente não sabe”. Desta forma esquematizou animais, pessoas, objetos e até anjos.

clip_image025 imagem 13 - Peixe - lapis cera e óleo sobre papel, 55cm x 73cm - 1987

clip_image026 imagem 14 - Lua - lapis cera e óleo sobre papel, 55cm x 73cm - 1987

Nesta fase, ele produzia cada figura separada da outra, superpondo-as na mesma folha de papel. Afirmando que é como se estivesse tudo junto num mesmo saco, fruta, peixe, casa, bicho.

clip_image028 clip_image030 imagens 15 - Figuras superpostas – lápis cera e guache sobre papel – sem data. imagens 16 - Figura abstrata – lápis cera e óleo sobre papel - sem data.

Depois ele separava um por um colocando-os em fileira.

clip_image032 imagem 17 – desenho das casas, arvores e mar, separados - guache sobre papel – sem data.

A pintura funcionava como um meio eficaz para ele separar imagens do tumulto de emoções e percepções, de conteúdos subjetivos e objetivos. O ambiente acolhedor do ateliê favorecia a livre expressão de sentimentos, tornando o mundo menos ameaçador, fazendo da pintura um verdadeiro método terapêutico.

clip_image034 imagem 18 - O Museu do Inconsciente funciona no prédio dentro do hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro

Com o tempo, o artista reencontrou nas Seções da Terapêutica Ocupacional a sua escola e nela mergulhou de corpo e alma. Foi mobilizando pela tendência ao naturalismo. Procurava o contato com o mundo externo, buscando o espaço cotidiano.

clip_image035 imagem 19 – Instrumentos musicais – guache sobre papel – sem data.

Ele pintou instrumentos musicais e bandejas com objetos dispostos de maneira adequada, assim como mesas fartas com exuberantes naturezas-mortas, passando a assinar seu nome.

clip_image037 imagem 20 – Mesa exuberante – lápis cera e óleo sobre papel – sem data.

Anos mais tarde, ao ser perguntado sobre a razão da beleza de suas pinturas, ele respondia “...não sou eu, são as tintas”.

clip_image039 clip_image041 imagens 21 e 22 – Comidas, frutas e objetos – óleo sobre tela – 64,5cm x 80 cm - 1954

O tema mais importante foi a casa, esta casa que ele nunca teve na realidade, mas que viveu na sua fantasia. O modelo de casa onírica de Fernando foi uma casa burguesa, um lugar onde a sua mãe trabalhou como costureira, e onde ele se apaixonou pela menina Violeta. Esta casa foi a mesma imagem carregada de afeto que havia desestruturado o campo da sua consciência e depois possibilitou o seu processo de reorganização.

Na série da casa, os objetos aparecem inicialmente misturados, e muito próximos uns dos outros. O espaço perdia o eixo ordenador e a percepção dos objetos fora da perspectiva habitual.

clip_image043 imagem 23 – Série das casas misturadas – óleo sobre tela – 50cm x 70cm – 1977.

O ponto de referência para a reestruturação do espaço cotidiano caracterizou-se pelo assoalho, a linha de base que sustenta todos os objetos.

clip_image045 imagem 24 - Chão e paredes da sala reestruturados – óleo sobre tela – 50cm x 64cm – 1978.

Inicialmente ele produziu a sala com o assoalho, reforçado por espessos rodapés de longas tábuas, e o canto da parede. Em seguida passou a pintar objeto, a poltrona, o candelabro, o piano e o aquário.

clip_image047 imagem 25 - piano e pianista na sala - óleo sobre tela – 50cm x 64cm – 1979.

Dizendo que ia aprendendo com a pintura, afirmava "que uma coisa é separada da outra". Esse movimento de separação dos objetos fez com que ele saísse do espaço escuro e passasse a viver a sensação do espaço claro.

clip_image049 imagem 26 - parte completa dos moveis da sala - óleo sobre tela – 50cm x 68cm – 1979.

Suas fantasias mais freqüentes estavam voltadas para o passado, caracterizando a casa ideal que gostaria de ter, com um bom espaço, um piano, uma mesa com luz e outros instrumentos musicais, muitas telas na parede assim, como tinha visto na casa da Violeta, a garota por quem havia se apaixonado. Na sala havia uma poltrona. Era desta forma que ele imaginava o interior do espaço, fantasiado. Para Nise da Silveira a casa era sentida por ele como o seu berço protetor, simbolizando a proteção do útero materno.

A produção que está no Museu do Inconsciente, compreende telas, desenhos, tapetes, modelagens. Diniz era um eterno aprendiz, tinha uma ânsia pelo conhecimento, levando-o a considerar o Hospital como semelhante a uma Universidade, e na sua longa reclusão, acumulou uma grande quantidade de informações.

clip_image051 clip_image053 imagens 27 e 28 - Fotos de Diniz criando modelagem e pintura - sem data.

Sua obra apresenta um resultado gráfico proveniente de toda a sua atividade intelectual, mostrando-se como um caleidoscópio de imagens, ora sucessivas, ora superpostas dinamicamente e coloridas. Do espaço para o tempo, do inorgânico para o orgânico, do geométrico para o figurativo, e vice-versa. Assim, Fernando foi tecendo o seu universo.

clip_image055 clip_image057 imagens 29 e 30 - Pinturas figurativas – lápis cera e óleo sobre papel – sem data.

Em 1952, foi fundado o Museu das Imagens do Inconsciente, em cujas oficinas os internos materializavam as suas impressões e os sentimentos nas suas telas, desenhos e esculturas. O Museu floresceu como um fenômeno para a arte e a ciência.

clip_image059 imagem 31 - Pintura figurativa circulares - lápis cera e óleo sobre papel – sem data.

Os resultados das oficinas permitiam à equipe da Doutora Nise desvendar com clareza, os processos mentais de pessoas com pouca ou nenhuma expressão verbal.

clip_image061 imagem 32 – Os aviões imaginários – lápis cera e óleo sobre papel – 50cm x 66cm – 1987.

Qual é a real fronteira entre realidade e a imaginação? Explorando este misterioso território, Nise observou que Fernando mergulhava num universo alienado do mundo material fora dele. O ir e vir da fantasia para o cotidiano permitia que os alienados se voltassem para a realização artística. Existem pessoas para as quais as linhas fronteiriças entre o real e o imaginário se esvanecem, perdendo o sentido e a importância que têm para a maioria.

Fernando sempre que se sentia desamparado, desestruturava a sua pintura. Ele só voltava a reestruturá-la, quando resgatava o próprio equilíbrio.

Segundo a observação da Doutora Nise, as variações gráficas e pictóricas traduziam o estado psíquico de Fernando, nos seus períodos de depressão. Ele recorria a imagens geométricas, como uma forma de reorganizar seu estado emocional. Sentindo-se mais seguro e cercado de afeto, ele faria desenhos mais orgânicos.

clip_image063 clip_image065 imagens 33 – Reorganização geométrica – guache sobre papel – sem data. imagens 34 - Garrafas e flores - óleo sobre tela – 40cm x 45 cm – sem data.

Não era propósito da Psiquiatra, avaliar a qualidade artística dos trabalhos, mas os críticos de arte conferiram ao artista e a alguns de seus companheiros, o status de artistas geniais. O reconhecimento do seu trabalho veio das exposições no Brasil e no exterior, por publicações, filmes e vídeos.

Fernando começou por produzir a estrela, que era um sistema gráfico que organizava o seu espaço interno. Dela nasciam todas as suas figuras.

clip_image067 imagem 35 – Desenhos circulares da estrela de oito pontas – lápis cera e guache sobre papel, 55cm x 71 cm – 1987.

A Estrela era considerada como a sua salvação, era um sistema que lhe proporcionava domínio e segurança.

clip_image069 imagem 36 – Estrela de oito pontas - lápis cera e guache sobre papel, 50cm x 70cm – sem data.

Realizou a estrela de oito pontas, que era representada por uma cruz e duas diagonais. Ele começava a desenhar traçando as linhas básicas e eram elas, que o guiavam para manter a proporção, o registro dos movimentos e as formas, definindo o espaço.

clip_image071 clip_image073 imagens 37 e 38 – Desenhos da janela, guarda chuvas, espaço circular e a mão - guache sobre papel – sem data.

Centrada no filme ESTRELA DE OITO PONTAS observa-se que trata de um desenho animado, com 35mm. É um curta-metragem, que sintetiza a trajetória e o amadurecimento da sua obra.

clip_image075 imagem 39 – Cena desenhada da estrela de oito pontas - guache sobre papel – sem data.

Através da animação, Fernando reencontrou todos os personagens e representações geométricas de suas fases anteriores, desenvolvidas no campo das Artes Plásticas e de representações do espaço visual, ressaltando, assim, uma ruptura com o modelo clássico de representação espacial cartesiano, figurativo-racional. Está baseado num único ponto de fuga, para um novo modelo de representação e reconstrução do universo: A Estrela.

clip_image077 clip_image079 clip_image081 imagens 40, 41 e 42 - Cenas do desenho animado da estrela de oito pontas - guache sobre papel – sem data.

Ele teve uma vida produtiva e integrada à comunidade, e só continuou vivendo dentro do hospital por não ter mais família ou alguém que pudesse cuidar da sua vida. Graças às suas explorações pela arte, Fernando não precisava mais tomar nenhuma medicação.

Com a descoberta da estrela como organizadora da sua Psique, ele deu início à sua produção em série, caracterizada como “as mandalas”.

clip_image083 imagem 43 – Exposição das mandalas - lápis cera e óleo sobre papel – sem data.

Mandala é uma palavra sânscrita, significa o "círculo mágico". É uma figura geométrica em que o círculo está circunscrito num quadrado ou um quadrado num círculo.

clip_image085 imagem 44 - Mandala - lápis cera e óleo sobre tela – sem data.

Possui subdivisões mais ou menos regulares, divididas por quatro ou múltiplos de quatro, irradiando-se de um centro ou movendo-se para dentro dele. Foi interpretada por Carl Gustav Jung como uma expressão da psique ou do “self”. As mandalas aparecem em sonhos, pinturas e podem ser analisadas pela psicologia analítica.

clip_image087 clip_image089 imagens 45 e 46 – Mandalas – guache sobre papel 30cm x 55 cm – sem data.

Referindo-se à mandala Fernando dizia: “...Para mim uma mandala é uma porção de coisas, tem tantas coisas em volta da mandala… um ovo estrelado pode ser uma mandala? Uma gota d’água é uma mandala? Cada pessoa diz uma coisa, cada mandala é diferente da outra...

clip_image091 imagem 47 - Mandala – lápis cera e guache sobre tela – 55cm x 73cm, 1987.

A Mandala personifica o ego e o seu campo interior, ela é caracterizada pelo círculo mágico, que impede a invasão do “self” por conteúdos perturbadores e provenientes do inconsciente, ordenando os elementos opostos em torno de um centro, com a mobilização de forças que compensam os estados de confusão.

Com o tempo Fernando reencontrou nas Seções de Terapêutica Ocupacional a sua escola e nela mergulhou de corpo e alma.

clip_image093 clip_image095 imagens 48 e 49 - Tapetes - guache sobre tela, ambas com 2,52 cm x 2,49 cm.

Após décadas bem sucedidas nas experiências artísticas, a reputação do Museu atraiu a atenção do cineasta Leon Hirszman, que realizou em 1986 um documentário de longa-metragem chamado "Imagens do Inconsciente". Segundo o próprio Fernando foi a sua participação nesta filmagem, "Em busca do espaço cotidiano" que o seu interesse foi mobilizado para o movimento da imagem.

A obra de Fernando Diniz foi retratada, e seu contato com a equipe de filmagem despertou nele uma obsessão: fazer cinema.

clip_image097 imagem 50 - Foto de Fernando Diniz com suas esculturas de barro

Construiu em barro diversos relógios de sol, que eram enormes engrenagens de luas e estrelas articuladas. Pintou e desenhou uma série inspirada pelo cinema, na qual utilizou o movimento de zoom e outros elementos da linguagem cinematográfica, integrando a imagem, o tempo e o espaço.

A partir deste momento ele voltou seu interesse para o desenho animado premiado: Estrela de oito pontas, para o qual realizou 40.000 desenhos sob a orientação de Marcos Magalhães.

Já doente, após uma cirurgia nos rins, ele foi transferido para a Vila da Unidade Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em 1997, onde permaneceu produzindo até a sua morte, com mais de 80 anos, em cinco de março de 1999, de cardiopatia e câncer.

Fernando Diniz produziu não apenas tapetes e mandalas, mas também um mosaico de imagens figurativas, abstratas, orgânicas e inorgânicas. Muitas das suas obras, telas, desenhos, modelagens, tapetes, alguns titulados e outros não estão no Museu do Inconsciente. Dizia ele: “mudei para o mundo das imagens”. Instado a definir o que era um pintor afirmou: “o pintor é feito um livro que não tem fim”.

Diniz desfez a separação entre arte e loucura, consciente e inconsciente, englobando saberes.

Referências

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Bachelard, G. - A poética do espaço - São Paulo: Martins Fontes, 1996.     

Bolshaw, C. - Estrêla de oito pontas”: a reconstrução do espaço em Fernando Diniz - Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ – 1997.       

Hirszman, L. - (Diretor) - Imagens do inconsciente: a barca do sol [filme cinematográfico]. Rio de Janeiro: Funarte - 1983.   

Jaffé, A. - O símbolo nas artes plásticas - In C. G. Jung, O homem e seus símbolos (pp. 230-271) - Rio de Janeiro: Nova Fronteira - 1996.       

Jung, C. G. - Tipos psicológicos - Petrópolis, RJ: Vozes - 1991.      

Magalhães, M. - Dois seres luminosos. Quaternio, (8), 143 - 2001.

Salem, H. - Leon Hirszman: o navegador das estrelas - Rio de Janeiro: Rocco - 1997.     

Samuels, Andrew; Shorter, Bani e Plaut, Fred - Dicionário Crítico de Análise Junguiana - Rio de Janeiro: Imago Ed. - 1988.

Silveira, N. da - Imagens do inconsciente - Rio de Janeiro: Alhambra - 1981.    

Silveira, N. da – O mundo das imagens – São Paulo: Editora Ática – 2006.

Silveira, N. da.; & LeGallais, P. - Experiência de arte espontânea com esquizofrênicos num serviço de terapia ocupacional, Quaternio, (7), 37-47 - 1996.

Ventura, Z. - Três viagens ao inconsciente. Jornal do Brasil, Caderno Ideias - 1986, 04 de outubro.